Título: Lições da Bósnia para o Iraque
Autor: Roger Cohen
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/11/2005, Internacional, p. A22

Ao chegar ao aeroporto de Sarajevo no mês passado, Nicholas Burns, vice-secretário de Estado dos EUA para questões políticas, foi escoltado pela polícia servo-bósnia até a cidade. Mas, em uma linha invisível na estrada, seu comboio parou para que os sérvios entregassem a guarda à Federação Muçulmano-Croata. "Duas forças policiais diferentes que não conseguem chegar a um acordo sobre quem protegerá um dignitário estrangeiro é um problema", observou Burns. O problema, como outros na Bósnia, reflete as deficiências no acordo de Dayton, o acordo de paz que foi elaborado pelos americanos há uma década e terminou com a guerra mais devastadora da Europa depois de 1945. Concebido depois que as forças nacionalistas sérvias expulsaram a população muçulmana de amplas porções da Bósnia, o acordo, assinado em Dayton, Ohio, em 21 de novembro de 1995, reconheceu a divisão de fato do país em linhas étnicas, mascarada pela fachada das fracas instituições nacionais.

Foi um confuso e pouco encorajador final para o conflito que eclodiu no vertiginoso final da guerra fria e deixou os líderes dos Estados Unidos, Europa e ONU expressando superficialidades a respeito da dificuldade de acabar com os banhos de sangue nos Bálcãs enquanto os canhões sérvios disparavam bombas contra as chamadas "zonas de segurança" criadas pelas Nações Unidas, das quais Sarajevo, teoricamente, fazia parte.

Mas o acordo de Dayton teve um mérito: acabou com a matança que já havia ceifado cerca de 200 mil vidas. O silêncio das armas foi um tributo ao que o poder e a diplomacia dos EUA podem fazer.

"Estou satisfeito porque todas as previsões pessimistas estavam erradas", afirmou Richard Holbrooke, o incansável ex-embaixador dos Estados Unidos que seduziu e intimidou os líderes sérvios, croatas e bósnios até que eles fossem para Ohio. "O total de mortes nas forças da Otan causadas por ações hostis na Bósnia desde Dayton é zero."

Holbrooke continuou: "Dayton é uma demonstração de que a liderança americana é indispensável. Mas liderança significa cooperação com os aliados e pressão sobre os adversários. Nenhuma dessas regras foi seguida no Iraque, com conseqüências desastrosas."

A Bósnia, claro, está muito longe de ser o Iraque e é uma guerra de outra época. Além disso, Holbrooke é um democrata com pouca inclinação a elogiar o governo republicano. Dito isto, a Bósnia, como o Iraque, é um país frágil cujo potencial de desintegração ao longo das linhas étnicas em 1995 era forte. Sua sobrevivência parece ter duas possíveis lições para o Iraque.

A primeira: os EUA são mais eficientes quando trabalham em conjunto com aliados poderosos e aceitam a necessidade de planejamento detalhado para levar paz a um Estado traumatizado do que quando improvisam alianças para fins específicos com países como Bulgária e Mongólia. As centenas de páginas do acordo de Dayton eram de uma complexidade de dar nó na mente, dependiam do apoio da União Européia e Rússia e foram sustentadas por uma imensa força da Otan.

Segunda lição: um compromisso militar de dez anos dos EUA pode ser frutífero. Os milhares de soldados americanos enviados à Bósnia diminuíram para 200, apoiados por uma força de 7 mil soldados da União Européia. Com os anos, a simples ausência da guerra deu chance à paz e grandes números de refugiados retornaram.

Enquanto a pressão política cresce para uma rápida retirada do Iraque, ou o estabelecimento de um cronograma de saída, a Bósnia, como Berlim antes dela, parece aconselhar perseverança.

"O Iraque e a Bósnia são tão diferentes quanto dois países podem ser, mas a nossa experiência nos Bálcãs nos ensinou na última década que perseverança e paciência podem levar à paz", disse Burns. "Fizemos um compromisso semelhante no Iraque e não vamos sair até o trabalho estar completo."

O desafio agora na Bósnia é acabar com as divisões que Dayton aceitou; criar instituições viáveis de um Estado unido e, como diz o diplomata Don Hays, "fazer a transição de uma democracia guiada para uma democracia completa".

Hays diz que sabe tudo sobre "guiar" a Bósnia. Ele trabalhou em Sarajevo como vice do principal representante internacional, Paddy Ashdown, um político britânico investido de vastos poderes. Viu como a presidência tripartite (um muçulmano, um sérvio e um croata) levou a uma paralisia; como a invocação de "interesses nacionais vitais" por grupos étnicos paralisou a legislação, e como o elaborado equilíbrio de Dayton produziu um "impasse étnico em todos os níveis".

Mas durante alguns anos, segundo Hays, ele teve pouco apoio para mudança por parte de um Departamento de Estado consumido pelo Afeganistão e Iraque. "Mal recebia um telefonema", lembrou ele. Até que Condoleezza Rice assumiu este ano como secretária de Estado e escolheu Burns, que era porta-voz nas conversações de Dayton, como um vice.

Nos últimos oito meses, houve uma silenciosa onda de atividade americana para "modernizar Dayton", nas palavras de Burns. Hays, agora no Instituto de Paz dos EUA, organização não-governamental dedicada a administrar conflitos, liderou negociações com os líderes bósnios que culminarão em cerimônias conjuntas em Washington amanhã e terça-feira. O resultado deve ser um Parlamento capaz de legislar; a substituição, no futuro, da presidência tríplice por um presidente e dois vice-presidentes, e o reconhecimento de novos direitos individuais e de minorias.

Durante a recente iniciativa diplomática, já se chegou a um acordo para criar um Exército único e unir as forças policiais que atormentavam Burns. Dayton está sendo ressuscitado, ou pelo menos reativado, para começar o longo processo de tornar a Bósnia viável como candidata à União Européia.

Mas nada disso vai funcionar, a menos que as mentalidades mudem. Então, Hays diz que quer ir além e fazer algo crucial para o futuro do país: criar uma "comissão da verdade" que consiga, por meio do diálogo, "construir uma narrativa comum do que aconteceu na guerra".

Hoje, essas narrativas divergem completamente, dependendo se são contadas por um muçulmano, um sérvio ou um croata. Mais ou menos como um sunita de Bagdá, um xiita de Basra e um curdo de Irbil vão contar histórias muito diferentes sobre o passado sombrio de um Iraque cujo futuro de reconciliação parece estar muito distante.