Título: EUA e Europa deveriam ouvir o sussurro iraniano
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Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2005, Internacional, p. A22

Um jovem professor em Isfahan estava visivelmente assustado. "Fale baixo", murmurou para seu amigo, enquanto discutíamos política em uma das muitas casas de chá desta cidade mágica do Irã. Mahmoud, assim o chamarei, prosseguiu atribuindo os problemas de seu povo a engodos americanos e europeus - um velho passatempo iraniano. Aí eu lhe perguntei o que ele achava que os Estados Unidos e a Europa deviam fazer a respeito do Irã. Mahmoud engoliu em seco. Fez-se um longo silêncio enquanto ele confidenciava com sua xícara de chá. Depois, curvando-se para mim e abaixando a voz, ele disse com calma intensidade: "Ficar junto. Compreender o que está acontecendo no Irã. Ter uma política consistente." Precisamos discutir o que fazer sobre o Irã. Na última semana, a diretoria da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) reuniu-se novamente para avaliar o programa nuclear iraniano. O arrocho não virá tão cedo, sobretudo porque o governo de George W. Bush já tem problemas de sobra na sua agenda. A última coisa de que Washington precisaria seria outro Iraque. Mas algum tipo de arrocho provavelmente virá no primeiro semestre do próximo ano, talvez com o envio da questão ao Conselho de Segurança da ONU. Então, não se assustem - estejam preparados. E essa mensagem sussurrada em Isfahan é um bom lugar para iniciarmos nossa preparação.

Primeiro, compreender o que está acontecendo no Irã. Isso é bem mais fácil para europeus do que para americanos. Os europeus têm embaixadas por lá, fazem negócios lá, podem viajar para lá. Como admitem abertamente políticos americanos experientes, não há nenhum país no mundo com o qual os Estados Unidos tenham menos contato. Então, nós, europeus, temos uma obrigação particular de ir lá, olhar e ouvir, e depois compartilhar nossas descobertas com nossos amigos americanos.

A fraqueza da política ocidental reside, com muita freqüência, no fato de que não parte de uma análise realista do país que se está tentando mudar. Essa foi a minha razão para viajar pelo Irã durante duas semanas no começo deste outono (setembro a dezembro no Hemisfério Norte), mantendo centenas de conversas sem censura com pessoas como o nervoso Mahmoud (meu relatório mais completo está em www.nybooks.com).

À primeira vista, você não terá dúvidas de que o regime é muito detestável e perigoso. Jamais esquecerei a conversa que mantive em Teerã com um estudante ativista que tinha sido detido e maltratado na mesma prisão onde a jornalista iraniano-canadense Zahra Kazemi foi espancada tão severamente que veio a morrer em decorrência dos ferimentos. Metade da população iraniana sofre restrições sistemáticas a sua liberdade simplesmente por ser formada por mulheres. Dois homossexuais foram executados recentemente.

A espinha dorsal do sistema policial ainda é uma ditadura ideológica com aspirações totalitárias: não comunismo, mas khomeinismo. O novo presidente e revolucionário envelhecido da República Islâmica, Mahmoud Ahmadinejad, uma parte subordinada, mas ainda importante da estrutura de poder, reafirmou recentemente o apelo do aiatolá Khomeini para varrer Israel do mapa. Segundo um porta-voz oficial, cerca de 50 mil iranianos se inscreveram numa iniciativa de recrutamento para "operações de busca de martírio". Elementos ligados ao regime quase certamente têm fornecido armas para o sul do Iraque, onde elas são usadas para matar soldados britânicos. E, claro, os mulás provavelmente estão tentando conseguir armas nucleares.

Então, enquanto essa discussão sobre o Irã se desenvolve, não devemos enveredar por nenhuma daquelas apologias confusas e/ou desonestas da esquerda européia que, por hostilidade à política americana, tenta fingir que o outro lado (Pol Pot, Leonid Brejnev, Saddam Hussein) não é nem a metade tão ruim quanto Washington diz. Pegando a deixa de George Orwell, é perfeitamente possível sustentar que Saddam Hussein dirigiu uma ditadura brutal e a invasão do Iraque foi a maneira errada de destituí-lo. Agora é correto dizer que os mulás iranianos dirigem um regime extremamente detestável e seria um erro enorme bombardeá-los.

Isso porque a segunda coisa que se descobre indo lá é que muitos iranianos, especialmente entre os dois terços da população com menos de 30 anos, odeiam seu regime muito mais do que nós. Com tempo, e o tipo certo de apoio das democracias de todo o mundo, eles acabarão transformando o regime a partir de dentro. Mas a maioria deles acha que seu país tem tanto direito à energia nuclear para usos civis quanto qualquer outro, e muitos sentem que ele tem o direito de ter armas nucleares.

Esses jovens persas são favoráveis à democracia e até aos americanos, mas também são ferozmente patriotas. Eles absorveram a desconfiança das grandes potências - especialmente Grã-Bretanha e Estados Unidos - juntamente com o leite de suas mães. Uma iniciativa errada por parte do Ocidente poderia jogar uma porção deles no campo do apoio ao regime.

"Eu amo George Bush", uma mulher me disse enquanto estávamos sentados num restaurante Kentucky Fried Chicken em Teerã, "mas eu o detestaria se ele bombardeasse meu país." Ou mesmo se pressionasse seus aliados europeus a imporem sanções econômicas mais duras relacionadas à questão nuclear.

Nosso problema é que o relógio nuclear e o relógio da democracia podem estar funcionando em velocidades diferentes. Alcançar uma mudança pacífica do regime a partir de dentro exigiria ao menos uma década, embora o presidente Ahmadinejad esteja apressando essa perspectiva com o tanto que tem aguçado as contradições no interior do sistema.

Por outro lado, as mais recentes avaliações da inteligência americana sugerem que o Irã ainda está a uma década de conseguir armas nucleares. Mas uma ação não militar significativa para impedir esse resultado precisa vir claramente antes, pois quando ditadores conseguem armas nucleares, o jogo muda de figura. Aí, como se viu na Coréia do Norte e no Paquistão, eles são tratados com um respeito que não merecem.

É aí que precisamos ouvir a outra metade da mensagem de meu amigo em Isfahan: ficar junto e ser consistente. Se a Europa e os Estados Unidos se dividirem em relação ao Irã, como fizeram sobre o Iraque, não teremos a menor chance de alcançar nossos objetivos comuns.

Para serem eficazes, Europa e Estados Unidos precisam fazer o oposto de sua divisão de trabalho tradicional. A Europa precisa estar preparada para brandir o porrete (a ameaça de sanções econômicas, pois é a Europa e não os EUA que tem comércio com o Irã) e os EUA, para acenar com uma grande cenoura (a oferta de uma "normalização" plena das relações em troca da contenção iraniana). Mas o velho Ocidente transatlântico não basta. A diplomacia nuclear de hoje em torno do Irã nos mostra que já vivemos num mundo multipolar. Sem a cooperação da Rússia e da China, pouco se conseguirá fazer.

E precisamos ser consistentes. Consistentes em nossa política para o Irã, embutida numa espécie de Processo de Helsinque para toda a região. Consistentes na defesa de um conjunto internacional de normas sobre o uso da energia nuclear, não apenas para o Irã, mas para outros também.

Consistentes, também, no reconhecimento de que nossa política deve tratar tanto do povo quanto do regime. Para cada passo que dermos para retardar a nuclearização do Irã precisamos dar outro para acelerar a democratização do Irã. Em cada etapa, precisamos explicar ao povo iraniano, por televisão via satélite, rádio e internet, o que estamos fazendo e por quê.

Isfahan não é apenas o local cada vez mais notório de uma usina de processamento nuclear, é também uma linda cidade onde vivem muitos cidadãos críticos. Mahmoud Ahmadinejad é um líder implacável, mas há muitos outros Mahmouds no Irã.Precisamos ouvi-los. No fim, serão eles, e não nós, que mudarão seu país para melhor.