Título: O veterano Mirage vai se aposentar
Autor: Roberto Godoy
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2005, Nacional, p. A21

FAB prepara festa para a desativação dos caças MirageIIIE/BR, defasados e no limite da fadiga, marcada para 31 de dezembro

Os ritos de passagem dos velhos guerreiros, os caças MirageIIIE/Br que a Força Aérea Brasileira (FAB) aposenta na noite de 31 de dezembro, já começaram. Às vezes são informais, como as visitas de despedida que ex-pilotos do 1º Grupo de Defesa Aérea (GDA) fazem aos hangares onde se alinham os remanescentes da frota dos primeiros supersônicos que a FAB recebeu, alguns deles em atividade há 33 anos. Mas haverá uma festa de adeus oficial no dia 14, na base de Anápolis, sede do GDA, a 140 quilômetros de Brasília. A equipe de 8 militares que foi à França receber os aviões, em 1972, será homenageada. É provável que alguns oficiais sejam embarcados no modelo D, de dois lugares, para a esticada final. Baixa altura, a mais de 1.000 km por hora. Menos da metade da velocidade máxima dos Mirage. Abaixo da barreira do som.

O clima na reservada instalação militar do Planalto, onde o Brasil está sempre em tempo de guerra, não é de dispensa de serviços. Nos abrigos de alerta, dois Jaguares F-103, o nome de código dos Mirage na FAB, estão sempre armados e abastecidos. As construções ficam próximas da pista, a ponto de permitir decolagem em menos de 5 minutos e suficientemente distantes para escapar das bombas de um eventual ataque contra as aeronaves em terra. Não há portas. O avião deve sair sem dificuldades. A missão é sempre de urgência. Com dois mísseis e canhões Defa de 30mm, ele voa além de 2 mil km por hora e cobre 1,4 mil quilômetros.

Em média são feitas até 8 decolagens por dia. Quase todas operações dedicadas ao treinamento dos 30 pilotos que compõem o quadro do GDA. Mas há saídas reais, de identificação de aeronave intrusa, clandestina, sem plano de vôo e em atitude hostil. Embora os procedimentos da operação sejam padronizados, quando está engajado na tarefa de interceptação, "o Jaguar ruge diferente", segundo o coronel José Sobrinho, piloto de uma das turmas dos anos 80.

Com ele concorda o coronel Thomas Blower, o primeiro a quebrar a barreira do som no MirageIIIE/Br em Bordeaux, na França, faz 33 anos. Oficial da reserva, não por acaso ele mora nas proximidades da cabeceira da pista de Anápolis. Os aviões passam sobre o seu telhado, com a turbina Atar trovejando com quase 7 toneladas de força para levar os 13 mil quilos do caça à altitude de combate.

Depois de percorrer a pista de 3 mil metros, subindo depressa para entrar no modo de busca determinado pelo Centro Integrado de Controle e Defesa do Espaço Aéreo (Cindacta), o piloto caçador cuidará do planejamento da abordagem do alvo.

CLANDESTINO

A identidade dos aviadores e as histórias das missões são dados reservados. Um oficial superior do Comando da Aeronáutica diz que não convém expôr o pessoal que sabe de alguns dos métodos militares mais secretos do País. Menos ainda, contar suas façanhas.

Poucas delas são conhecidas. A mais notória é do vôo clandestino de um jato da empresa estatal Cubana de Aviación, na noite de 9 de abril de 1982. No Atlântico Sul rolava a Guerra pelo controle das ilhas Falklands/Malvinas, entre argentinos e britânicos. O jato comercial, do tamanho de um Boeing 727, entrou no espaço aéreo e rumava no que sugeria a área de exclusão sobre Brasília.

Não respondeu a nenhuma das tentativas de contato. Ignorou os chamados de dois Mirages enviados para interceptá-lo. Manteve as luzes apagadas. O comandante só reagiu quando viu ao seu lado um dos caças, sob a chuva intensa, iluminado pelos raios. A ordem de abate, autorizada pelo presidente, general João Figueiredo, foi abortada a 3 minutos do disparo.

O diplomata cubano estava empenhado em chegar a Buenos Aires para propor negociações de paz antes da chegada do secretário de Estado americano, general Alexander Haigh.

Mais recentemente - sem que o episódio seja confirmado ou desmentido - outro jato de grande porte apareceu de repente nos radares. O ilustre passageiro seria o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, para uma visita surpresa ao amigo Lula. Chegou para jantar. Foi embora às 3 horas. Identificou-se depressa, mas ganhou a escolta de dois sinistros Mirage.

DEFASAGEM

Com uma folha de 65 mil horas de vôo, formação de 350 pilotos, e 5,3 horas de permanência operacional no ar, todos os dias ao longo de 33 anos, os aviões franceses foram vencidos pela defasagem tecnológica e ainda estão no limite da da fadiga.

O substituto comprado pelo Alto Comando - 12 Mirage 2000-C, usados, cedidos pela França por 60 milhões, mais 15 milhões em suprimentos e 5 milhões pelo treinamento técnico - "é a melhor solução possível" afirma o comandante da aeronáutica, brigadeiro Luis Carlos Bueno.

São interceptadores com alguma capacidade de bombardeio terrestre. Construídos a partir de 1985, têm sistemas híbridos, eletrônicos.

No primeiro minuto do dia 1º de janeiro a tarefa de defender o espaço aéreo sob guarda do 1º GDA passará a ser feita pelos primeiros F-5M, supersônicos americanos, encomendados a partir de 1973 junto à Northrop Corporation.

Estão sendo modernizadas 46 unidades na fábrica da Embraer em Gavião Peixoto, no interior de São Paulo, por meio de um consórcio da empresa brasileira com a israelense Elbit. Na FAB são rebatizados de Tigre.

Esses supersônicos revitalizados são os melhores caças em operação na América Latina, dotados de recursos eletrônicos de última geração, adequados ao uso de armas que a FAB ainda nem tem. Vão voar até 2020 pelo menos.