Título: Para Caiado, caso Lubeca foi um mensalão que conseguiram abafar
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2005, Nacional, p. A14

Denúncia que deputado fez em 1989 também tinha doleiros, transferência de US$ 2 milhões e até garotas de programa

Quando se escrever a história do mensalão, será preciso admitir que Ronaldo Caiado tinha razão - desde 1989. No calor da primeira eleição direta para presidente depois do regime militar, o candidato Ronaldo Caiado, do PSD goiano, denunciou um milionário esquema de verbas clandestinas envolvendo a construtora Lubeca e a campanha de Luiz Inácio Lula da Silva. Em muitos aspectos os dois escândalos se parecem: em 1989, como em 2005, havia doleiros, fortunas na boca do caixa e até garotas de programa. O escândalo de 2005 derrubou ministros e destruiu o núcleo central do governo Lula. Em 1989, o vice-prefeito Luiz Eduardo Greenhalgh, apontado como responsável pela coleta de dinheiro clandestino, foi afastado de suas funções pela prefeita Luiza Erundina, que se considerou traída pelo auxiliar. Mas as investigações foram interrompidas antes que o inquérito tivesse terminado. Por intervenção da Justiça Eleitoral, o caso foi transformado em crime eleitoral e transferido para Brasília, onde acabou arquivado pouco depois. Em função disso, ninguém foi chamado a prestar contas à Justiça. Nenhum político teve o mandato cassado. Na prática, foi como se o mensalão tivesse terminado com a queda de José Dirceu e Luís Gushiken do ministério. "Meus homens ficaram revoltados", conta o deputado Luiz Antonio Fleury Filho, do PTB, então secretário de Segurança Pública. "Eu havia colocado a elite da polícia para investigar o caso e tudo fora esclarecido. A intervenção parecia um golpe para abafar a apuração."

Aos 56 anos, três filhas e um filho, no terceiro mandato como deputado pelo PFL, Caiado faz ironia com o empenho atual da oposição para apurar as denúncias contra o PT. "Depois que a onça está morta todo mundo cria coragem de passar por cima dela" afirma. Caiado ainda chama o eleitorado de "meu povo", não perde uma oportunidade de fazer críticas ao PT mas orgulha-se de ter contatos de alto nível com o governo Lula, "onde uma autoridade de primeiro escalão confessou que ficou surpreso com minha disposição para o diálogo. Ele pensava que eu era truculento", diz. Presidente da Comissão de Agricultura, que discute e aprova projetos de todo tipo para o setor, Caiado dirige os trabalhos, comanda as votações com uma narrativa rápida como a de locutor de leilão de gado e surpreende o plenário com momentos de humor. Num dia da semana passada, o deputado João Grandão, do PT de Mato Grosso do Sul, tinha dificuldades para ler um documento - até que Caiado, para diversão geral, inclusive do próprio parlamentar petista, sugeriu que pegasse por empréstimo um par de óculos do vizinho.

PERSEGUIÇÃO

Em 1989, Caiado foi acusado de denunciar o esquema do PT só para prejudicar Lula. Considerando suas idéias políticas - fundador da União Democrática Ruralista (UDR), adversário das idéias de esquerda no campo e na cidade -, seria absurdo imaginar outra coisa.

O problema é que a acusação, embora apoiada em documentos e testemunhos, jamais recebeu a atenção que merecia. Num exemplo clássico de manipulação ideológica, usaram-se as idéias de Caiado para esconder os fatos concretos que ele apontava. Ele conta que durante a campanha tornou-se alvo de cenas de perseguição, que atribui a militantes do PT: "Em Curitiba, quebraram o vidro do meu automóvel. Em Fortaleza, nossa comitiva foi ameaçada por um grupo mascarado, que ameaçava com barras de ferro. Em Cuiabá, quebraram o nariz de um assessor. No Pará, tentaram desmontar nosso palanque." O deputado diz que, nas salas de aula, "professores diziam a meus filhos que eu era latifundiário".

Sua denúncia surgiu por acaso, numa ação entre amigos. Informado por um fazendeiro do Paraná de que um funcionário da contabilidade da Lubeca possuía a cópia de um cheque no valor de US$ 200 mil entregue à campanha de Lula, Caiado descobriu uma negociação nos bastidores da Prefeitura de São Paulo, envolvendo um investimento milionário na cidade. Examinou papéis e conferiu documentos até ficar convencido de que era coisa séria. "Vi até fotografias", recorda ele.

Caiado chegou à TV Bandeirantes para um debate entre candidatos, mediado por Marília Gabriela, com uma cópia do cheque no bolso. Num exercício de memória, 16 anos depois, ele conta que num dos blocos ouviu uma provocação de Lula e não resistiu. "Ele falou qualquer coisa sobre eu aparecer na TV montado num cavalo branco. Tirei o cheque do bolso e mostrei para ele, dizendo que ele usava dinheiro de construtora para viajar de jatinho." A denúncia deixou a platéia e os assessores em estado de choque, recorda Fernando Mitre, diretor de Jornalismo da Band, que participou como entrevistador. "Naquele momento, uma denúncia de corrupção envolvendo o PT parecia surrealismo", diz ele.

Encarregada de apurar um caso que poderia transformar-se em troféu eleitoral, a equipe do delegado Massilon Bernardes Filho ouviu as principais testemunhas, seguiu indícios variados e chegou a um esquema gigantesco de propinas e verbas de campanha, que envolvia não apenas o PT mas políticos de várias legendas. Surgiram nomes de parlamentares que marcavam audiência em troca de dinheiro. Também se descobriu um verdadeiro vôo da alegria: um jatinho que deixava o Rio de Janeiro lotado de garotas de programa para passar o fim de semana em Brasília. A polícia apurou que a contribuição total da Lubeca para o PT chegou a US$ 2 milhões.

Numa disputa de alta temperatura, aliados de Fernando Collor pressionavam por uma apuração demolidora, rápida e barulhenta. O PT e seus aliados não queriam investigação alguma. Subsidiária da Bunge & Born, gigante planetário do agronegócio, a Lubeca se movia para evitar arranhões maiores à sua imagem. No dia marcado para o depoimento de um doleiro responsável pela coleta e distribuição de recursos, ocorreu a virada, numa cena de filme: um delegado da Polícia Federal apresentou-se pela manhã a Massilon com um ofício de Brasília, informando que o caso mudara de mãos e nem aquele depoimento poderia ser colhido. A partir de então, o caso foi morrendo. "É claro que houve um acordo para abafar tudo", afirma Caiado. Procurado para falar sobre o caso, o delegado Massilon não dá entrevistas.

No PT, abriu-se uma investigação interna que produziu resultados espantosos. Assessor jurídico encarregado de discutir o projeto da Lubeca em nome da prefeitura, o advogado Eduardo Carnelós descobriu que queriam fazê-lo de laranja. Enquanto debatia seriamente os prós e contras do projeto, a campanha do partido fazia negócios às suas costas. Petista de andar com estrela na lapela e adesivo no automóvel, Carnelós gravou uma fita em que um intermediário da negociação com a Lubeca fazia um relato desinibido sobre a transação, sustentando até que Lula estava informado de tudo. A gravação mostra Carnelós, indignado, dizendo que não acreditava no que ouvia.

Pressionado pelos caciques do PT, o advogado fez um acordo no final da campanha: guardaria a fita até o segundo turno e depois do pleito seria aberta uma investigação. A eleição passou e nada aconteceu. As fitas foram publicadas depois pelo repórter Kazumi Nakano, do Jornal da Tarde.

No final, Carnelós virou réu: Lula decidiu processá-lo por calúnia, alegando que a imprensa divulgara trechos da gravação que comprometiam sua honra. Seu advogado foi o atual ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Perdeu na primeira instância. Entrou com recurso e perdeu novamente. O advogado de Carnelós era Arnaldo Malheiros, o mesmo que hoje responde pela defesa do tesoureiro do valerioduto, Delúbio Soares. Rompido com o PT, Eduardo Carnelós não dá entrevistas sobre o assunto.