Título: 'Brasil deve oferecer uma redução na proteção à indústria nacional'
Autor: Patrícia Campos Mello
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2005, Economia & Negócios, p. B4

Para Jagdish Bhagwati, um dos maiores especialistas em comércio, País deve mostrar suas cartas para obter concessões agrícolas

Chegou a hora de o Brasil fazer uma oferta mais ambiciosa de redução da proteção à indústria nacional. Esse é o conselho de Jagdish Bhagwati, considerado o maior especialista mundial em comércio internacional, sempre cotado para o Prêmio Nobel de Economia. "Uma vez que os países emergentes fizerem uma oferta - e chegou a hora de fazer isso - essa oferta poderá ser usada por Peter Mandelson (comissário de Comércio da União Européia), pela Inglaterra e Escandinávia para aprofundar as concessões européias", diz o economista indiano Bhagwati, professor da Universidade Colúmbia (EUA), às vésperas da reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Hong Kong. Segundo ele, Brasil e Índia serão obrigados a fazer concessões , tanto em bens industrializados, como em agricultura. "Acho difícil de acreditar que o presidente Lula não possa reduzir um pouco a proteção à indústria brasileira, em troca de concessões em agricultura!"

Entre os preparativos para participar da reunião de Hong Kong, que começa no dia 13 de dezembro, e a finalização do artigo que escreveu para edição especial da revista Foreign Affairs, Bhagwati concedeu esta entrevista ao Estado:

Diferentemente da maioria dos especialistas em comércio internacional, o sr. está otimista em relação à reunião de Hong Kong. Por quê?

Há vários motivos para otimismo. Eu acho que a Rodada Doha vai dar certo, porque o Grupo de Cairns (grupo de 17 países exportadores agrícolas, que apóia a liberalização mundial do comércio desses produtos) não tem opção, vai ter de fazer algumas concessões aos EUA e à União Européia para ter avanços na agricultura. Os subsídios à produção agrícola não podem ser eliminados em acordos bilaterais. É politicamente impossível cortar subsídios à exportação por meio de acordos de preferências tarifárias - imagine se os EUA cortam seus subsídios em uma negociação bilateral com o Mercosul, enquanto a UE não corta - os europeus ficariam mais competitivos no mercado brasileiro. Então, se o Grupo de Cairns quer eliminar os subsídios dos EUA e da Europa, eles precisam fazer a Rodada Doha dar certo. Além disso, Brasil, Índia, Argentina e outros líderes do G-20 têm tarifas industriais altas o suficiente para oferecer cortes (ao contrário do que diz a ONG Oxfam). O Grupo de Cairns também tem, em geral, tarifas altas para produtos agrícolas e pode oferecer cortes como contrapartidas às concessões que o Representante de Comércio dos EUA, Rob Portman, quer oferecer. Não vejo por que não oferecer uma redução na proteção aos produtos agrícolas, para que os países de Cairns finalmente consigam um corte significativo nas tarifas e subsídios agrícolas dos EUA e UE.

Quais seriam as principais conseqüências de um fracasso na reunião de Hong Kong?

Acho que a reunião de Hong Kong não será bem-sucedida, mas isso não quer dizer que a rodada vá fracassar. Mas vamos supor que Doha fracasse: chegamos em 2007 e a rodada não deu em nada. Será que o fracasso da Rodada Doha seria um desastre? Bom, por um lado, iríamos parar de avançar na liberalização do comércio. Mas isso não quer dizer que iríamos andar para trás. Só ficaríamos empacados onde estamos hoje. Será que perderíamos enormes benefícios trazidos pelo livre comércio? Sei que deveria responder sim a essa pergunta. Mas, francamente, quando olho esses estudos do Banco Mundial e do Instituto de Economia Internacional (IIE, na sigla em inglês), que sempre mostram ganhos extraordinários da liberalização do comércio, eu começo a tremer. Eles se apóiam em tantos pressupostos arbitrários, que deveriam ser usados só como orientação e não como previsão de números. Estão dizendo que, se Doha falhar, haverá uma proliferação dos acordos bilaterais. Essa é outra afirmação absurda: os tratados bilaterais já estão avançando a todo vapor. Com Doha ou sem Doha, os acordos bilaterais se tornaram uma pandemia sob a liderança dos EUA, e agora chegaram até a Ásia. Preciso confessar que fiquei muito feliz quando o presidente Lula deu um chute bem dado no presidente George W. Bush, ao afirmar que a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) teria de esperar até o fim da Rodada Doha. Graças a Deus que o Brasil conseguiu ver a questão de forma clara.

Qual seria o seu conselho para o ministro Celso Amorim?

Conheço o ministro Celso Amorim há algum tempo, desde que ele foi embaixador do Brasil em Londres. Ele é suficientemente esperto para não precisar dos meus conselhos. Tenho certeza de que Amorim se dá conta de que o Brasil e o meu país natal, a Índia, terão de fazer algumas concessões e que, em troca, precisamos exigir mais do sr. Mandelson (Peter Mandelson, comissário europeu de Comércio). Também concordo com a opinião dele, de que será necessário fazer uma reunião de Hong Kong II. Sugeri há alguns dias, em um artigo no (jornal britânico) Financial Times, que o Pascal Lamy (diretor-geral da OMC) deveria elaborar um Rascunho de Lamy para Hong Kong, como Arthur Dunkel fez o Rascunho de Dunkel na Rodada Uruguay. (Dunkel, então diretor-geral do GATT, elaborou um documento para resolver o impasse das negociações.) Com um rascunho de Lamy, poderíamos fazer uma reunião em Copenhague, seis meses depois de Hong Kong. O primeiro-ministro dinamarquês Rasmussen é uma enorme força pró-livre comércio. A partir daí, tentaríamos fechar um acordo real até o fim de 2006. Se eu tivesse que dar um conselho ao ministro Amorim, eu diria: lembre-se de que essa não é a última rodada de negociações e seria razoável aceitar uma proposta dos EUA e UE que inclua a eliminação dos subsídios à exportação, um corte pequeno, mas significativo, nos subsídios ligados à produção (distorcivos) e um corte maior em tarifas e cotas. Brasil, Índia e Argentina deveriam retribuir essa oferta, em alguma escala.

Qual é o papel de cada país - Brasil, Índia e China - nas negociações multilaterais? Os três países são membros do G-20, mas têm interessees conflitantes. O Brasil é ofensivo em agricultura (protecionista em indústria e serviços); a Índia concorda em abrir serviços (mas protege indústria e agricultura) e a China é ofensiva em produtos industriais (protecionista em serviços e agricultura). Qual é o futuro dessa aliança?

Brasil e Índia serão obrigados a fazer concessões , tanto em bens industrializados, como em agricultura. Em produtos industriais, a Índia tem uma tarifa média aplicada de 15%, e pode facilmente fazer concessões. A Índia saiu de uma abordagem protecionista para uma atitude mais assertiva, que permite ao governo cortar mais as tarifas. Acho difícil de acreditar que o presidente Lula não possa reduzir um pouco a proteção à indústria brasileira, em troca de concessões em agricultura! Já a China pode ser um gigante que despertou na economia mundial, mas dentro do G-20 ainda é um parceiro sonolento. Os problemas da China com o Ocidente são proteção à propriedade intelectual, taxa de câmbio e direitos humanos. Todas essas questões não terão relevância em Doha.

O Brasil apostou tudo nas negociações de Doha. O governo brasileiro não concentrou esforços na Alca ou no acordo UE-Mercosul. O que acontece com o Brasil se a Rodada Doha fracassar completamente? Muitos países vêm fechando acordos bilaterais e regionais. Qual é o perigo de desvio de comércio (causando perda de negócios para outros países que têm acordos)e erosão de preferências (com novos acordos, tarifas preferenciais que o Brasil tinha em alguns países perdem a importância, porque outros parceiros também ganham preferências)?

Partindo do pressuposto de que a Rodada fracasse, a pergunta é: será que o tamanho do Brasil ou do Mercosul não garantem a eles poder de barganha para dizer a outros países o seguinte: se vocês nos discriminarem, vamos discriminá-los também? Afinal, é sob esse prisma que eu interpreto os acordos regionais que estão surgindo na Ásia. Eles são uma reação aos acordos regionais costurados pelos EUA. De qualquer maneira, o resultado é sempre inferior ao que seria obtido por uma negociação multilateral. Além disso, nada impede o Brasil de fechar acordos bilaterais com outras nações da América Latina, uma estratégia de retaliação semelhante à da Ásia. E acho que isso vai ocorrer, de qualquer jeito. Os EUA estão usando os acordos bilaterais e regionais para impor a seus parceiros todo tipo de exigência não relacionada a comércio. O Brasil pode oferecer acordos bilaterais que se restrinjam a questões de comércio, exatamente da maneira que o País quer que a Alca e OMC sejam (essa também é a posição da Índia). Os EUA gostam de descrever a posição do Brasil, de só incluir nas negociações temas relacionados ao comércio, de Alca light - esse termo é pejorativo, é como se o Brasil tivesse adulterado um bom vinho. Mas, na realidade, os EUA é que estão usando os acordos para impor todo tipo de exigência e para atender a lobbies de sindicatos, interesses financeiros, de propriedade intelectual e enfiar tudo isso nos acordos comerciais.

Em seu mais recente artigo no 'Financial Times', o sr. dá algumas sugestões sobre como resolver o impasse de Doha. Mas algumas questões permanecem. O sr. acha que a França vai permitir que Mandelson faça uma oferta mais ousada em produtos agrícolas, mesmo que os países emergentes ofereçam abertura no setor de serviços? O que deveria ser feito para desobstruir Doha?

A posição da França continua muito ruim. E talvez tenha ficado pior depois das recentes explosões de violência no país. Perversamente, enquanto esses distúrbios demonstram que a globalização não é a causa dos problemas da França, que os distúrbios refletem o modelo social do país, o governo francês pode acabar chegando à conclusão oposta. A situação da Alemanha também é problemática, porque a primeira-ministra Angela Merkel tem uma posição frágil e a influência dos bávaros na coalizão leva a um protecionismo agrícola. Mas os países nórdicos e a Inglaterra ficam no lado da liberalização agrícola. Uma vez que os países emergentes fizerem uma oferta, e chegou a hora de fazer isso, essa oferta poderá ser usada por Mandelson, pela Inglaterra e Escandinávia para aprofundar as concessões européias.