Título: Lição irlandesa: déficit zero não é solução para tudo
Autor: Jamil Chade
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2005, Economia & Negócios, p. B10

Tigre celta fez drásticos cortes nos gastos públicos, mas também reduziu os impostos das empresas para atrair investimentos

A Irlanda passou a fazer parte do vocabulário político e econômico no Brasil, especialmente entre os defensores do déficit zero como meta a ser alcançada para que a economia possa crescer. A experiência irlandesa, apesar do êxito, mostra que cortes nos orçamentos podem ser positivos, mas não suficientes para o bom desempenho da economia e a maior competitividade do país. No caso irlandês, os cortes foram seguidos por políticas de redução de impostos e a criação de um ambiente que propiciou um resultado positivo para os 4 milhões habitantes do país.

"Embora o princípio do corte de gastos possa ser adotado em qualquer lugar - e, certamente, tem o potencial de trazer resultados -, as dimensões dos problemas brasileiros e irlandeses são completamente diferentes ", alertou David Madden, professor de Política Fiscal da University College de Dublin. Ele lembra que a população de seu país é menor que a da cidade de São Paulo.

Depois de anos vivendo com um dos países mais pobres da Europa e com taxas de desemprego acima da média da região, a Irlanda tomou medidas drásticas em meados dos anos 80. A relação entre a dívida e o Produto Interno Bruto (PIB) chegava a 120% e uma das soluções foi cortar profundamente os gastos públicos de um ano para o outro.

Em 1986, a Irlanda fez um corte de 6% nos gastos com saúde, de 7% nos da educação, 18% na agricultura, 11% em moradia e transporte e aboliu muitos órgãos públicos. Em um ano, o corte total de gastos de capital do governo foi de 16% e, ao chegar ao início da década de 90, a Irlanda havia reduzido de forma dramática o tamanho do governo. Já em 2001, a relação entre PIB e dívida era de apenas 29%.

Mas, paralelamente às reduções drásticas nos gastos governamentais, os irlandeses promoveram um corte profundo nos impostos, adotaram uma série de políticas para incrementar os investimentos e contaram, por anos, com os preciosos recursos da União Européia (UE) para subsidiar a agricultura e outros setores menos desenvolvidos.

Uma das principais medidas foi reduzir a carga tributária das empresas para apenas 10%, atraindo investimentos e tornando a Irlanda um pólo de tecnologia. Em 1998, 82% da renda das indústrias vinham de empresas estrangeiras. Os irlandeses ainda foram capazes de atrair 10% de todo o investimento direcionado na Europa.

Não por acaso, o crescimento da Irlanda nos últimos 15 anos bateu todos os recordes na Europa, a ponto de o país ser considerado, em meados dos anos 90, o "tigre celta". Desde 1997, a economia irlandesa cresceu, em média, 7% ao ano, com picos em 1999, quando o aumento do PIB foi de 10%. Para 2005, a economia irlandesa deve crescer 5%. Apesar da desaceleração, o ritmo é pelo menos duas vezes maior que o do restante da Europa.

FATOR EUROPEU

O nível de vida dos irlandeses ainda teve uma melhora expressiva durante os últimos anos. Em 1987, um irlandês tinha uma renda equivalente a 63% da de um inglês. Em 2000, os níveis passaram a ser idênticos.

O sucesso foi tão grande que os irlandeses conseguiram estar entre os primeiros a atingir a meta da Comissão Européia de impedir que os países tenham um déficit do setor público acima de 3% do PIB. No caso da Irlanda, o país chegou a ter superávit em seu orçamento, em grande parte alimentado pelo aumento dos impostos pagos pelas novas empresas que se instalaram em Dublin.

Além de todas as políticas adotadas internamente, a Irlanda contou com um fator que dificilmente poderá ser obtido pelo Brasil: o acesso garantido a um mercado de 300 milhões de consumidores. Apesar de ser um país com menos de 4 milhões de habitantes, dos quais apenas 1,7 milhão são trabalhadores, a Irlanda pode destinar quase toda a sua exportação à UE, sem pagar qualquer taxa aduaneira durante os últimos 20 anos.

Se não bastasse essa vantagem, os irlandeses receberam recursos da UE durante toda a década de 80 e parte dos anos 90. Para analistas do Instituto de Pesquisa Econômica e Social de Dublin, o timing desses recursos foi fundamental para garantir o sucesso da economia irlandesa.

Esse dinheiro vindo de Bruxelas, calculado em alguns bilhões de euros, permitiram que o governo local pudesse investir em infra-estrutura e educação, paralelamente ao corte de gastos públicos que estava promovendo. "Está claro que o corte de gastos não explica todo o sucesso irlandês. Tivemos uma boa administração da situação, dinheiro da UE, um mercado para onde exportar e ainda muita sorte por ter feito isso quando nosso principal parceiro, a Inglaterra, também crescia ", afirmou o professor Madden.

Segundo os economistas do país, a Irlanda deve ser um exemplo muito mais para os novos membros da UE, como Hungria, do que para economias bem maiores que a de Dublin.

Para 2006, a prudência dos irlandeses continua e ninguém pensa em aumentar os gastos públicos de forma exagerada. Os gastos governamentais aumentarão em 6,6%, o que seria o equivalente a 3 bilhões. Em Dublin todos sabem: a estabilidade obtida não garante que o crescimento continue se medidas na área de produção, educação e competitividade não continuarem a serem tomadas.