Título: O medo e a morte rondam os canaviais
Autor: José Maria Tomazela
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2005, Economia & Negócios, p. B14

Cortadores de cana são vítimas da 'birola', esforço extra para ganhar mais

Francisca Maria da Conceição Lima, de 34 anos, economiza até na comida para juntar R$ 160,00 para o "clandestino" que a levará de volta a Codó, no Maranhão, sua terra natal. Da casa de dois cômodos que divide com a filha Francisca das Chagas, de 7, e mais seis pessoas, em Guariba, região de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, vai levar apenas uma fotografia. É a lembrança que ficou do marido Valdecy de Paiva Lima, cortador de cana, que aos 33 anos morreu vítima da "birola". "Clandestino" é o ônibus que transporta migrantes do Norte e do Nordeste para trabalhar nos canaviais paulistas. "Birola" é como eles chamam a "esticada" no corte da cana para ganhar um pouco mais. O esforço extra que ajuda a garantir o "contrato" da próxima safra pode ter matado pelo menos 13 trabalhadores nos canaviais paulistas desde abril de 2004.

As mortes, relacionadas com exploração do trabalho humano, podem prejudicar as exportações brasileiras. "Os esforços do Brasil para ser grande fornecedor de açúcar e álcool para o mundo ficarão ameaçados com a repercussão desse problema lá fora", avalia o presidente do Sindicato dos Empregados Rurais de Guariba, Wilson Rodrigues da Silva, de 39 anos.

As exportações de açúcar e álcool renderam ao País US$ 4 bilhões no ano passado. Só de álcool, o Brasil deve exportar 2,3 bilhões de litros este ano. Silva lembra que observadores da Organização das Nações Unidas (ONU) acompanham, atentos, a investigação das mortes feitas por organismos como o Ministério Público Federal, Ministério do Trabalho, Pastoral do Migrante e entidades defensoras dos direitos humanos, além do sindicato rural. Eventual atribuição às condições de trabalho desumanas vai acarretar bloqueios à compra de derivados da cana brasileira, diz o sindicalista. A imprensa internacional já se interessou pelo drama - na semana passada, a equipe de uma TV francesa esteve em Guariba.

Valdecy faleceu em julho. Tombou no meio da plantação da usina da Central Energética Moreno, em Luiz Antonio, e morreu depois de cinco dias, no hospital São Francisco, de Ribeirão Preto. Os médicos atestaram morte por Acidente Vascular Cerebral (AVC). A mulher garante que ele só se queixava de cansaço.

"Chegava moído, não tinha força para mais nada." Nos últimos tempos, tomou vitaminas. "Tinha passado a ser fixo e queria mostrar serviço." Fixo é o trabalhador com contrato direto com a usina. Um privilégio, já que a maioria é contratada pelo "turmeiro" ou "gato", como eles chamam o intermediário. A terceirização, adotada pelas indústrias, criou um sistema que o procurador federal da 15ª Procuradoria Ministério do Trabalho, Aparício Querino Salomão, classifica como perverso. "O cortador ganha por produtividade e, como a remuneração é baixa, se vê forçado a aumentar a produção."

É o que pode ter acontecido com a mais recente vítima, Antonio Ribeiro Lopes, de 55 anos, morto quarta-feira após passar mal num canavial também da Moreno. Durante o velório, 250 trabalhadores na zona rural paravam para protestar contra as mortes, como a de José Mario Alves Gomes, de 45 anos. Ele deixou Araçuaí, em Minas, para cortar cana na região de Piracicaba. No dia 21 de outubro, saiu de madrugada do alojamento Jibóia, no bairro Campestre, e às 7 horas, já estava no corte, a serviço da usina Santa Helena, do grupo Cosan. Quando tombou, às 14h30, havia cortado 19 toneladas. "Na sua planilha, o fiscal tinha registrado 3 toneladas a menos", revelou o procurador.

Convencido de que se tratava de mais uma vítima da birola, Salomão pediu a exumação do corpo. Ele espera os laudos para apurar indícios de trabalho excessivo. "O piso nessa região é de R$ 382,00 por mês e os cortadores precisam se desdobrar para guardar algum dinheiro."

A maioria dos migrantes viaja com esse objetivo. "Se consigo guardar o salário livre, volto para casa com quase R$ 3 mil no fim da safra", diz o cortador José Aparecido Pereira, de Líbero Badaró (MG).

Muitos se atolam em dívidas com os contratantes e consomem a saúde trabalhando mais. Foi o que levou o ex-cortador paranaense Donizete Pedro Romão, de 46 anos, à perda precoce da capacidade de trabalho. Em 2002, passou mal no canavial, caiu com o feixe de cana e torceu a coluna. De lá para cá, apoiado em uma bengala, se arrasta tentando a aposentaria. "Queriam que eu voltasse a trabalhar. Como, se vivo à base de remédio para dor?"

No mês passado, conseguiu o afastamento com pensão de R$ 502,00. O tempo parado fez outros estragos: sem dinheiro, deixou de comprar remédios para o filho Eduardo, de 10 anos, que tem problema cerebral. A casa onde vive tem 7 meses de aluguel atrasado. "Não fui despejado porque o dono teve compreensão."

Em Guariba, a maioria dos 31,1 mil moradores é de migrantes. Na madrugada, o trânsito é mais intenso do que de dia. Chega a ter congestionamento dos ônibus que transportam os rurais. "Não queria filho meu cortador, mas não tive opção", conta José Ferreira de Amorim, 47 anos. Braço estropiado pelo manejo do facão, ele teme pelos filhos Valdeci, de 26 anos, e Izael, de 23, cortadores fixos. Com salários entre R$ 450,00 e R$ 500,00 por mês, vivem apertados em cômodos cedidos pelo pai. A mulher de Valdeci, Silvia, levanta às 4 para preparar a marmita - arroz, feijão, frango ou sardinha frita.

Às 5, Valdeci e Izael correm para o ônibus que cruza o escuro na outra esquina. Silvia volta para a cama, sonhando com outra vida.