Título: O Brasil pode ter sua própria TV digital?
Autor: Ethevaldo Siqueira
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2005, Economia & Negócios, p. B20

Pode, sim, leitor. Mas, antes de dar as razões dessa resposta, vale a pena relembrar o que aconteceu após a divulgação da notícia do primeiro sucesso tecnológico - pelo Estado, com exclusividade, no domingo passado. De lá para cá, houve aplausos e protestos diante dessa primeira vitória de nossos pesquisadores e cientistas no desenvolvimento de um sistema brasileiro de TV digital. E não se trata da sigla burocrática SBTVD, com a qual é conhecido o projeto nas áreas governamentais. O resultado vai muito além do sentido político do projeto, pois há um trabalho consistente da equipe de cientistas que nele atuam. Por isso, respondemos afirmativamente à pergunta que dá título a esta coluna. Sem nenhum nacionalismo tecnológico, xenofobia ou sectarismo.

Nesse campo, o grande desafio não é recriar ou reinventar a roda, mas associar a tecnologia disponível com a contribuição brasileira para produzir o projeto mais moderno, mais criativo e competitivo. E tudo compatível com o mundo.

Sonho? Não. Como demonstra a experiência internacional, a grande competência de qualquer nação nesse setor está hoje mais no poder de inovação dos projetos do que na criação de tecnologias e de padrões. É da qualidade desses projetos que resultam os maiores avanços em diversos setores industriais. O Brasil tem bons exemplos dessa estratégia. Querem um? A Embraer. Com sua competência comprovada mundialmente, essa empresa associa o que existe de melhor em matéria de turbinas, sistemas eletrônicos, softwares e partes e componentes para criar os aviões de classe mundial, exportados para todo o planeta. É na excelência dos projetos dessas aeronaves que o Brasil se destaca internacionalmente.

Filosofia semelhante está conduzindo, até aqui, o trabalho dos pesquisadores brasileiros, partindo de um sistema de modulação comprovadamente moderno, avançado e robusto, como o de Multiplexação por Divisão de Freqüência Ortogonal (OFDM, do inglês Orthogonal Frequency Division Multiplexing). Ou da incorporação do sistema de compressão digital de vídeo MPEG 4. Ou a criação do middleware brasileiro totalmente compatível com o mundo. Ou da criação da caixa de conversão (ou set top box) eficiente, altamente interativa e de baixo custo, como peça fundamental no processo de inclusão social, via TV digital, com que sonha o Brasil.

APLAUSOS

Pesquisadores, cientistas, engenheiros e profissionais do setor aplaudem a idéia central do sistema brasileiro. Assim, em documento enviado na semana passada ao ministro Hélio Costa, das Comunicações, quatro entidades de prestígio e representatividade nacional - a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Sociedade Brasileira de Computação (SBC), a Sociedade Brasileira de Telecomunicações (SBrT), e a Sociedade Brasileira de Engenharia de Televisão e Telecomunicações (SET) - afirmam que o programa nacional de desenvolvimento tecnológico da TV digital é estratégico para o desenvolvimento social e econômico do Brasil. E manifestam "satisfação pelo sucesso alcançado com os resultados obtidos na primeira fase do desenvolvimento tecnológico do programa". Finalmente, pedem o apoio do governo para assegurar a continuidade das pesquisas em 2006, em especial por meio dos recursos do Fundo de Tecnologia das Telecomunicações (Funttel), aos institutos e laboratórios de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, determinantes ao longo dos últimos anos para a consecução dos excelentes resultados obtidos.

É claro que ainda há muito a ser feito. Ninguém seria ingênuo a ponto de supor que o Brasil já venceu o desafio tecnológico e industrial. O que surpreende é o resultado desta primeira etapa.

PROTESTOS

Como prevíamos, sempre existirão opositores ao projeto por desinformação, mas também haverá opositores honestos e bem intencionados ao modelo brasileiro. Muitos deles, em função de interesses de suas empresas (que podem ser legítimos) num mercado que deverá gerar negócios anuais de bilhões de dólares.

Paulo Saab, presidente da Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (Eletros), protesta porque sua entidade não foi ouvida até aqui. Segundo ele, a notícia de que o governo teria optado pela escolha do padrão brasileiro de TV digital foi recebida com estranheza pelos fabricantes de televisores. "Embora a indústria eletroeletrônica seja parte fundamental no processo de implantação da TV digital no Brasil, reclama, não fomos sequer consultados pelo governo a respeito da escolha desse padrão".

A discussão do sistema brasileiro de TV digital vai ganhar destaque nesta semana, em diversos locais, envolvendo o Congresso, ministérios e entidades representativas da indústria e da radiodifusão. É apenas o começo de um grande debate que deverá ainda se aprofundar ao longo dos próximos meses.

Não é fácil manter o equilíbrio diante de tantos interesses opostos. O que desejamos - e sabemos ser quase utópico - é que a discussão seja objetiva, serena e pragmática, levando em conta, acima de tudo, os interesses da sociedade brasileira e do consumidor. Mas contemplando, também, as novas oportunidades que se abrem para a radiodifusão e para a indústria brasileira.