Título: 'Eu não traí a minha geração'
Autor: Fred Melo Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2005, Aliás, p. J3

Dirceu diz entender manifestações contrárias, mas dá autógrafos e posa para fotos nas ruas

Na quinta-feira passada, o ex-deputado José Dirceu acordou tarde. A noite anterior fora uma empreitada difícil, tanto que ele vinha tentando evitá-la. Mas não teve jeito. Do apartamento em Brasília, assistiu à Câmara cassar seu mandato de deputado logo à 0h01 - 293 votos a favor, 192 contra. Naquele minuto fatal, o ex-ministro-chefe da Casa Civil sentiu-se "indignado". Mas, como considerava o processo "mera formalidade" e via-se como alguém que "já estava condenado" independentemente das provas, foi dormir o sono dos justos. Não acordou tarde porque tenha revirado na cama. O motivo é prosaico: José Dirceu está com uma virose. Quando ele saiu da cama sem mandato foi primeiro fazer seus exercícios físicos, como sempre. Depois respondeu e-mails, como toda manhã. Vestiu camisa de manga e gravata, como se fosse deputado. Na semana que passou, esteve com lideranças políticas, participou de um ato em Osasco em favor do companheiro de partido e agruras João Paulo Cunha. Assim deseja estar o ex-ministro de 59 anos, ainda que inelegível pelos próximos dez: fazendo política. Não sabe exatamente como ¿ ou, ¿como cidadão¿ ¿, mas diz que ¿começa de novo, de baixo, do zero¿. Planeja uma viagem para os Estados Unidos e dois livros com a ajuda de Fernando Morais. Na quinta-feira, recebeu o Aliás (em manga de camisa e gravata) para a seguinte entrevista:

Qual foi o seu sentimento quando ficou decidido que o senhor estava cassado?

Eu já estava preparado e organizando a vida. Mas me senti indignado, porque considero tudo isso uma violência não só política como constitucional ¿ não existe cassação política na Constituição. Houve uma busca desenfreada de provas. Devassaram a minha vida. Não encontraram nada. O processo contra mim foi mera formalidade. Eu já estava condenado.

Sentiu-se aliviado também?

Não, porque vou continuar enfrentando essa discussão pelos próximos anos. Vou lutar para readquirir meus direitos e provar minha inocência. Porque, no meu caso, o ônus da prova cabe a mim. Ao contrário do que já se disse, não desisti do meu mandato. Isso, aliás, é uma questão jurídica que cabe aos meus advogados. Particularmente, não tenho ânimo para recorrer ao Supremo Tribunal Federal nesse momento. Vou escrever o livro com o Fernando Morais, vou montar um escritório de advocacia em São Paulo com uma advogada que já teve escritório comigo. Vou fazer palestras... Se me convidarem, vou percorrer o País para debater seus problemas. Quero discutir o programa do próximo governo. Se o presidente for candidato, o programa dele precisa ser repactuado...

O senhor foi o grande responsável por transformar o partido que vivia de vender estrelinha em um partido profissional. À luz da crise e de sua cassação, valeu a pena?

Transformamos o PT numa instituição, que é o que o Brasil precisa ¿ fortalecer os partidos, ao contrário do que estamos vendo hoje no Congresso, com o fim da verticalização. Fizemos do PT uma grande instituição política, social e cultural, com valores, programas e objetivos. Ele não deixou de ser grande porque cometeu erros. Se fosse assim, os jornais brasileiros não existiriam, porque eles faliram, entraram em crise, mudaram de mãos, sofreram períodos de erros gravíssimos. Teve jornal que apoiou o DOI-Codi! O PT cometeu erros que já está sanando. Ele os assumiu e vai banir o caixa dois de sua prática. Por tudo isso, valeu a pena.

O senhor foi peça fundamental na construção da vitória de Lula. O desfecho de sua história significa que assustava mais os adversários do que o próprio presidente?

Os adversários me escolheram como alvo desde o começo. Mal cheguei ao governo, começaram as tentativas de me desestabilizar. Mesmo na campanha eleitoral já surgiram notícias de que eu seria receptor de recursos de origem ilegal que teriam sido arrecadados em Santo André. O STF arquivou essa representação do Ministério Público de São Paulo porque era leviana. Depois, a partir da crise Waldomiro Diniz, houve CPI, inquérito da Polícia Federal, e também nada se provou contra mim. Mais tarde, quando procurava definir os rumos do governo, encontrei resistência muito grande de alguns setores da oposição e da mídia. Fui escolhido como alvo principal, e agora eles atingiram os seus objetivos: o governo perdeu a maioria no Congresso; as CPIs estão instrumentalizadas para desgastar o governo, para inviabilizar a reeleição do presidente, e não para apurar corrupção; eu estou cassado. Atingiram os objetivos, mas isso não acabou ¿ é um ato de uma peça que vai se desenvolver nos próximos 10, 20 anos. Esses acontecimentos não encerram a minha história, nem a do PT, nem a do governo Lula.

O senhor ainda acha que deveria ter deixado o governo no episódio Waldomiro Diniz?

Não. Coloquei o cargo à disposição, porque é assim que deve fazer um ministro acusado de um ato ilícito. Agora, no final de 2004, avalio hoje que eu deveria, sim, ter saído. Mas em razão de diferenças com muitas questões dentro do governo...

Por divergências com a área econômica?

Não só a economia. Divergências também sobre como formar a maioria no Congresso, sobre o funcionamento do governo. Naquele momento, considerava que era importante eu ir para a Câmara. Mas acabei encontrando resistência na bancada do PT e o próprio presidente tinha opinião contrária. Assim, fiquei no governo até junho de 2005.

O senhor ainda se encontra com Waldomiro Diniz, que era um amigo?

Nunca mais o vi nem falei com ele, desde os acontecimentos de fevereiro de 2004.

Essa crise serviu para moer a imagem de algumas pessoas, entre elas Genoino e Delúbio, que o senhor citou na entrevista que concedeu depois de cassado. Qual seu sentimento em relação a essas pessoas?

De solidariedade, apoio, respeito.

O senhor fica com pena deles?

Não tenho pena de ninguém. Tenho amizade e, na medida do possível, vou apoiá-los. São pessoas que dedicaram toda a vida à luta política e social no País, à construção do PT. Se erraram, estão pagando por isso. Já pagaram no PT e estão respondendo na Justiça. São todas elas pessoas que estão reconstruindo a vida. Pessoas honestas.

O senhor acha que houve contra eles algum tipo de violência?

A vida é assim, cheia de momentos como esse que estamos vivendo. Cada um já está procurando uma solução profissional, já se reencontraram com a família, já recuperaram a auto-estima. O Genoino, se depender de mim, será candidato a deputado federal. Será eleito porque merece.

O senhor é o símbolo de toda uma geração que lutou contra a ditadura e por um mundo melhor. Como essa geração está olhando hoje para o senhor?

A imensa maioria dos meus companheiros de 68 foi solidária comigo. Grande parte da intelectualidade, dos artistas e escritores, também. Tive apoio dos partidos de esquerda, da militância política, da CUT, do MST... Evidentemente, deve haver, em todos esses setores, cidadãos que me condenam. Mas não traí os ideais da minha geração. Não sou hostilizado nas ruas, ainda que manifestações contra sejam naturais. Mas nada que beirasse a violência traiçoeira que sofri esta semana...

O maluco que agrediu o senhor a bengaladas?

Tem nada de maluco, não. O tempo vai dizer o que é isso... Mas o fato é que não sou hostilizado. Toda vez que vou ao cinema, ao restaurante, dou autógrafo, tiro foto.

Em algum momento da crise o senhor se desesperou?

Já passei por momentos mais difíceis e tenho experiência política. Qualquer político como eu sabe gerenciar crises. Claro que esta envolveu todo o PT, o governo, o País ¿ para todos nós, foi uma grande tragédia. Mas em nenhum momento cheguei a me desesperar, a achar que não tinha saída. O momento mais duro foi quando pediram para que eu saísse do Campo Majoritário. De qualquer forma, entendo, mesmo os meus companheiros de 20, 30 anos. Não guardo mágoa.

O senhor é hipertenso, não?

Tomo uma medicação bem leve desde 1998, mas não chego a ser hipertenso. Tenho picos de tensão porque vivo sempre à beira da estafa ¿ costumo trabalhar 14, 16 horas por dia. Mas faço exercícios, tenho uma alimentação balanceada, não fumo, bebo pouco ¿ mais vinho, menos cerveja, quase nunca uísque porque só tomo Jack Daniel¿s, e este nunca tem.

Na acareação com Roberto Jefferson, quem o conhece temia pela sua saúde...

Evidente que sofri um desgaste físico e mental muito grande nesses meses. Mas você se reequilibra à medida que descansa, vê filmes, lê. Eu li muito...

O que o senhor leu?

Desde O Vingador, do Frederick Forsyth, até a viagem do Humboldt pela América Latina, um livro que se chama O Cosmos de Humboldt. Desde a biografia do Fidel até a do Arafat ¿ Arafat: o Irredutível, aconselhável para quem quer enfrentar a vida política.

O senhor tem uma vida inteira de dedicação a um projeto político. Quanto desse projeto o senhor realizou?

Quando foi fundado o PT, disse que nós estávamos realizando um sonho da minha geração, que era ter no Brasil um partido de esquerda, de trabalhadores. E que esse partido disputaria o poder, não faria apenas oposição. Nesse sentido, realizamos o projeto porque Lula é presidente. Agora, um partido e um governo têm por objetivo transformar um país. Para isso, temos ainda 10, 20, 30 anos de luta pelo menos ¿ em 10, creio que possamos eliminar dois terços da pobreza que temos. Enquanto eu e outros estivermos vivos, o projeto continua, mesmo que se perca a eleição.

Particularmente, o senhor se sente como alguém que nadou e morreu na praia?

Sinto que acabou o primeiro tempo e vai começar o segundo. Estou no vestiário recuperando as forças. Vou tomar banho, pôr um uniforme limpo e voltar para o jogo. Iludem-se aqueles que acham que estou fora. Posso não ter condições mais, posso não ser aceito. Mas, no que depender de mim, vou participar da política do País nos próximos 10, 20 anos ¿ 30, espero.

O senhor já acalentou o sonho da Presidência da República?

Nunca passou pela minha cabeça. Isso é intriga de alguns tucanos que posam de punhos de renda, mas na verdade são coronéis ¿ coronéis urbanos da política. São os mesmos que disseminaram nos círculos políticos de Brasília que eu organizei a Polícia Federal, a Abin e uma estrutura de recursos para a disputa de 2010. Calúnia típica desses personagens desprezíveis. São pessoas que o convidam para ir à casa deles e depois revelam para a imprensa a conversa que tiveram.

Como o senhor pretende reconstruir seu capital político?

Já reconstruí na própria luta que fiz me defendendo.

Foi uma estratégia?

Foi dever de consciência, dever ético. Tenho responsabilidade com a militância, com os que votaram em Lula, com a minha geração. Não vou aceitar nunca uma condenação sem provas.

A partir de agora, como pretende reerguer-se?

Não estou preocupado com minha carreira pessoal ou com meu capital político. Se atuar nessa perspectiva, vou fracassar. Tenho de atuar como cidadão. Vou começar de novo, de baixo, do zero. A vida é assim. Não vou fazer nada que não seja, nesse momento, à altura do que aconteceu comigo e das minhas possibilidades, que são pequenas.

O senhor já se imaginou indesejável em algum palanque do PT?

Pelas viagens que fiz, pela maneira como fui recebido, acho que isso não vai acontecer. Mas temos de esperar para ver como a sociedade vai julgar minha cassação.

Esse tipo de pergunta o machuca? Porque isso é novo para o senhor, não?

Não. Eu fui considerado terrorista no País durante anos, repudiado pela imensa maioria.

Mas, para você, deve ser diferente ser considerado um corrupto...

Só fico indignado, porque não sou. Por outro lado, tenho a consciência tranqüila.

O que o senhor vai fazer nos Estados Unidos?

É uma viagem pessoal. Vou ficar na casa de uma família em Washington, estudar inglês e conhecer o país. Posso ficar um mês, dois ou três ¿ depende, inclusive da situação política do País nas próximas semanas.

Do que exatamente vai tratar o livro que Fernando Morais escreve com o senhor?

É sobre os 30 meses em que exerci o cargo de ministro-chefe da Casa Civil. Vai tratar dos objetivos do governo, dos problemas e alternativas, da forma como o Estado brasileiro está organizado, das reformas, da relação com o Congresso. Talvez seja escrito em primeira pessoa.

E o resto da sua vida?

O Fernando Morais já está pesquisando para fazer, daqui a alguns anos, o livro completo. Já estou reunindo todo o material que tenho. Estivemos em Cuba, onde filmamos, buscamos documentos, entrevistamos amigos. Mas é um projeto, nada programado para o curto prazo.

O senhor tem medo do ostracismo?

Já vivi anônimo várias vezes na vida. Cheguei a São Paulo com 14 anos e fui ser office-boy. Às vezes vivia numa solidão total... Clandestino, preso, banido. Não tenho nenhum medo do ostracismo. E, em última análise, o que eu sou é um brasileiro. Isso me basta. Tenho certeza de que vou ser feliz do mesmo jeito.