Título: Transferir renda é a receita que deu certo
Autor: Fernando Dantas
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/12/2005, Aliás, p. J4

Pode ser eleitoreiro. Mas fez cair a desigualdade, dizem as estatísticas

RIO DE JANEIRO - Um detalhe na resposta à 125ª e última pergunta do questionário da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) chamou a atenção do pesquisador Ricardo Paes de Barros e sua equipe no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Entre 2002 e 2004, o porcentual de famílias que responderam que recebiam ¿aluguel, juros, aplicações, dividendos e outros¿ subiu de 13,7% para 24,4%. Nenhuma mudança remotamente parecida com essa ocorreu no número de famílias que reportaram receber os outros tipos de rendimento computados na pesquisa: trabalho principal, trabalho secundário, transferências governamentais, etc. Os olhos de Paes de Barros, um dos mais respeitados especialistas em política social do Brasil, brilham quando ele pergunta ¿e você sabe o que o manual do entrevistador da Pnad diz?¿ A pergunta é retórica, evidentemente, e ele a responde imeditamente: ¿Que quem recebe Bolsa-Família deve reportar neste item aqui (o tal ¿aluguel, juros, aplicações, dividendos e outros)¿.

Se o que Paes de Barros suspeita for comprovado (e ele e sua equipe, que inclui a companheira Mirela de Carvalho, têm trabalhado febrilmente nisso), estará demonstrado que o Bolsa-Família e os demais programas de transferência de renda vêm tendo enorme impacto na inédita e substancial redução da desigualdade no Brasil nos últimos dois, três anos.

Se a alta no número de respondentes da Pnad que disseram estar recebendo ¿aluguel, juros, aplicações, dividendos e outros¿ for de fato devida ao Bolsa-Família e outras transferências, isso significa que esses benefícios se irradiaram para mais 10% dos lares brasileiros entre 2002 e 2004, simultaneamente à expressiva melhora da distribuição de renda. O outro grande fator por trás do fenômeno, segundo Paes e Barros, são os avanços no sistema educacional desde meados da década de 90.

Os especialistas na área social no Brasil estão vivendo um momento de grande excitação desde que os resultados da Pnad 2004 foram divulgados no final da semana passada. O que a Pnad 2003 apontava como uma tênue possibilidade foi confirmado em cheio pela pesquisa colhida no ano passado: a monstruosa desigualdade brasileira, que por mais de três décadas se manteve incólume no altíssimo nível a que foi alçada nos anos 60 e 70, entrou em trajetória de queda. É cedo para dizer se a tendência se manterá no médio e longo prazo, mas ela já apresenta sinais de consistência praticamente inéditos desde que existem indicadores confiáveis de distribuição de renda. A desigualdade, obviamente, ainda está em níveis inaceitavelmente altos.

O índice de Gini (que mede a desigualdade, e é tanto melhor quanto menor) dos rendimentos familiares per capita caiu para 0,574 em 2004, o menor nível desde pelo menos 1974. A queda foi particularmente forte a partir de 2001, quando ele estava em 0,597. A razão entre a renda média apropriada pelos 10% mais ricos e a dos 40% mais pobres caiu em 2004 para 20,1 ¿ o nível mais baixo de que se tem conhecimento. Esse índice atingiu um pico de 30,2 em 1989, o auge da hiperinflação, e ficou entre 24 e 25 por boa parte dos anos 90. Os 50% mais pobres apropriaram-se de 13,7% da renda nacional em 2004, também um recorde, acima do nível entre 12% e 12,5% da década passada. Por outro lado, a parcela dos 10% mais ricos caiu 45,4%, num movimento iniciado em 2001, depois de muitos anos ligeiramente abaixo de 48%.

A queda da desigualdade somou-se ao crescimento do PIB de 4,9% em 2004 para provocar uma grande queda da pobreza, que saiu de 34,1% da população para 31,7% (pelos critérios do Ipea) em apenas um ano. Paes de Barros resume a história: ¿Para o pobre, tirando o Plano Cruzado, é o melhor momento dos últimos 30 anos. Já o rico acha que hoje está muito pior do que nos últimos anos¿. A seguir, trechos da entrevista que o pesquisador deu para o Aliás, na sexta-feira, em sua sala do Ipea, no Centro do Rio.

DESIGUALDADE

Que a desigualdade tem diminuído sistematicamente nos três últimos anos é um fato sensacional, novo e representa tudo aquilo que quem queria combater a pobreza gostaria de ver no Brasil, e ainda mais quando isso vem acompanhado de um crescimento igual ao do último ano. A recomendação de qualquer cartilha de combate à pobreza é fazer isso mesmo, conseguir ter um crescimento razoável com redução da desigualdade. Então, isso é maravilhoso.

RICOS E POBRES

Reduzir a desigualdade é reduzir a distância entre o pobre e o rico. O que aconteceu no Brasil nos últimos três anos foi uma forte redução da distância entre pobres e ricos, e portanto uma grande redução da desigualdade. Se isso se dá em um ambiente de muito crescimento, pode acontecer sem que os ricos percam. Basta que os ricos ganhem pouco e que os pobres ganhem muito, o que reduz a diferença entre os dois. Num ambiente recessivo, se os ricos perdem muito e os pobres pouco, também se reduz a desigualdade, como no período Collor. O que aconteceu de 2003 para 2004 foi que os pobres ganharam e os ricos perderam. Não houve um crescimento suficientemente grande para todo mundo ganhar, mas nem tão negativo que todo mundo perdesse.

LULA X FHC

Mas de onde vem esse negócio? A gente está estudando. A quem atribuir é sempre complicado porque existem defasagens entre a ação e o resultado. Essa redução da desigualdade pode ser também, em parte, o resultado de uma série de coisas que Fernando Henrique fez tempos atrás e agora estão dando fruto, como no caso da educação.

EDUCAÇÃO

Na última década, tivemos um progresso educacional que é completamente diferente em termos da magnitude do que houve nos dez anos anteriores, foi estupidamente mais acelerado. Então, está acontecendo aquilo que todo mundo previa há um tempão. Quando há pouca oferta de mão-de-obra qualificada e muita de não-qualificada, o salário da primeira sobe e o da segunda cai. Só que agora o sistema educacional está botando tantas pessoas educadas no mercado que está começando a diminuir o diferencial de salário entre o qualificado e o não-qualificado. Esse diferencial em 2004 é menor do que em 2002. E esse fato já levou a uma redução de desigualdade. Se isso é um quarto ou um terço da explicação, não sei dizer direito, é o que a gente está avaliando.

ASSISTENCIALISMO

Enquanto a gente não tinha programas bem focalizados, que realmente davam prioridade aos pobres, havia um monte de gente que dizia o seguinte: temos de fazer uma política mais eficiente, que realmente beneficie os pobres, que realmente atinja quem mais precisa, etc. Agora, você pode reclamar do Bolsa-Família, mas negar que o nível de focalização dele esteja um patamar à frente dos outros programas sociais brasileiros é loucura. Mas então as pessoas dizem: ¿Ah, agora vocês têm um programa focalizado, que é o Bolsa-Família, mas ele é clientelista; agora que chegaram nos pobres, vocês vão usar isso de forma eleitoreira¿. Bem, mas isso é um risco de qualquer programa focalizado. Se você quer acabar com a pobreza, tem de chegar no pobre.

MÉXICO E ELEIÇÕES

O que fez o México, em relação ao risco de que esse tipo de programa se torne eleitoreiro? Criou uma comissão de notáveis, botou dinheiro para supervisionar e pediu à ONU que atestasse que toda a seleção dos beneficiários durante o ano eleitoral não seria utilizada politicamente. O que o governo mexicano fez, voluntariamente, foi ter supervisão do funcionamento do programa durante o período eleitoral. Acho que o governo brasileiro deveria fazer isso, seria ótimo para o desenvolvimento do Bolsa-Família.

CRESCIMENTO

Quem não gosta de crescimento é maluco. A queda da pobreza é uma combinação de redução da desigualdade com crescimento. De 2003 para 2004, sem o crescimento, a gente perderia metade da redução da pobreza. Mas, do ponto de vista do financiamento dos programas sociais, dependemos menos do crescimento e mais da credibilidade de uma boa política econômica, de tal forma que a taxa de juros caia. Isso aliviaria o orçamento do governo, e permitiria mais gastos na área social.

MAIS RECURSOS

O que eu faria se houvesse mais recursos para expandir a política social? É meio irresponsável responder a isso assim, de repente. Se essa oportunidade estivesse aberta, e tivéssemos de pensar a respeito disso, ia dar um bom trabalho saber o que fazer. Talvez eu possa sugerir algumas linhas. Uma delas seria gastar mais nos meios, isto é, gastar para que a gente gaste melhor. E aí está incluído melhorar o cadastro, criar agentes comunitários para visitar as famílias, etc. Pelo lado mais programático, é evidente que, hoje, no Brasil, o grande buraco é no atendimento à população até 6 anos. E também é preciso criar mais vagas para os pobres nas etapas finais da educação, especialmente na universidade.

PRIMEIRA INFÂNCIA

Os seis primeiros anos de vida são importantes por diversos fatores. Um deles é biológico. Aquilo que você não fizer quando a pessoa tem 3 anos vai custar muito mais caro depois. É um problema da formação do cérebro. O segundo argumento é simples: se você vai investir em algo, tem de se preocupar em quanto tempo vai durar aquele benefício. Se investir numa criança nos primeiros anos de vida, o benefício vai durar a vida toda. E o terceiro ponto é aquele que o Heckman (James Heckman, Prêmio Nobel de Economia, que se encontrou com Paes de Barros em recente visita ao Brasil) enfatizou, a questão do conflito entre eqüidade e eficiência. A Embraer mantém em São José dos Campos a escola Pitágoras, que pega os melhores alunos das famílias pobres da rede pública e tem um resultado fantástico. Mas evidentemente gera desigualdade, porque os jovens que iam mal na escola pública ficam ainda mais para trás, já que não entram na Pitágoras. Então, é um grande dilema decidir se os recursos devem ser gastos com os jovens pobres com maior potencial ou se com os de menor potencial. A primeira opção privilegia a eficiência e a economia, e a segunda a eqüidade. Quando se trabalha com a primeira infância, esse dilema não existe, porque as crianças são essencialmente iguais nesse ponto.

PORTA DE SAÍDA

Todos nós gostaríamos que todo gasto social fosse um investimento, que sempre desse oportunidade para alguém talentoso desenvolver suas habilidades e sair da pobreza pelo próprio mérito, esforço ¿ e fim de papo. Acontece que existem pessoas em relação às quais isso não vai ocorrer. E a política social brasileira já gasta uma centena de bilhões de reais com transferências para a população idosa, que está exatamente naquele caso. Um segundo ponto é ter em mente as necessidades de quem de fato tem o talento, a capacidade e a energia para sair da pobreza. Porque, se for construída uma bela escola ao lado da casa dessa pessoa, ela não vai freqüentar se estiver com fome, se tiver de trabalhar para ajudar a família ou ficar em casa tomando conta dos irmãos. Então, se eu não der condições para a pessoa aproveitar as belas oportunidades que estou criando ¿ e as transferência se renda fazem isso ¿, ela não vai aproveitar. Muitos dos jovens brasileiros não vão para a universidade não porque não têm talento ou porque a universidade não está ali. Eles não vão porque, mesmo quando passam no vestibular, não têm condições de se manter na universidade. Parte da política social é criar oportunidades, parte é dar condições às pessoas para que possam aproveitá-las. Não adianta cair na armadilha de Cuba, ou seja, não adianta as pessoas adquirirem uma série de capacidades que depois não terão oportunidade de utilizar. Nesse ponto, o crescimento econômico é fundamental.

MULHERES E NEGROS

Quando se fala de desigualdade, tem de separar aquilo que é uma origem detestável daquilo que é uma origem importante para explicar o fenômeno com um todo. A desigualdade racial e a desigualdade de gênero não são tão importantes assim para gerar desigualdade de renda no Brasil, quantitativamente, mas, em termos de quão detestáveis elas são, certamente estão entre as primeiras da lista. Porque é mais fácil aceitar que um trabalhador qualificado ganhe mais do que um não-qualificado do que aceitar que dois trabalhadores com a mesma qualificação, um homem e uma mulher, ganhem salários diferentes. A desigualdade racial e de gênero são muito diferentes. No mercado de trabalho, a desigualdade de gênero é muito maior que a desigualdade racial. Na educação, é o contrário: as mulheres são tão ou mais educadas que os homens, enquanto os diferenciais por cor são gigantescos. Ou seja, o diferencial de cor se manifesta na escola, e o mercado de trabalho simplesmente ratifica, separando o qualificado do não-qualificado. No caso da mulher, é o contrário. Durante toda a infância, ela não é discriminada. A discriminação contra a mulher é gerada no mercado de trabalho.