Título: O PIB e as lições de navegação
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/12/2005, Aliás, p. J5

Como os desencontros dos ministros de Lula retardam a travessia desse barco chamado Brasil

É cortesia da internet a história que se segue. Em 18 de outubro de 1961, o Museu de Arte Moderna de Nova York pendurou O Barco de Matisse de cabeça para baixo. O filho do pintor descobriu o erro 47 dias depois. Era um 4 de dezembro, como hoje. A diferença é que mais de 47 semanas se passaram desde que o Banco Central pendurou a Selic no céu. Os críticos reclamam, mas o BC não escuta. Também durante as últimas 47 semanas o trabalhador chinês continuou a meter mãos à obra e o consumidor norte-americano a gastar de montão. Um e outro garantiram a maré alta que levanta os navios ao redor do mundo. Mas o barco brasileiro, de quilha para o ar, perdeu a maré cheia e a corrente que leva a bom destino.

Quem perde a onda tem viagem confinada à mediocridade, pois das marés depende a vida das nações. Bem aproveitadas, elas criam riqueza. Desperdiçadas, os negócios encalham em bancos de areia. Agora que o IBGE divulgou que o Produto Interno Bruto caiu 1,2 % no terceiro trimestre em relação ao trimestre anterior, veremos se o BC tem algo inteligente a dizer.

Palocci disse que o BC não errou. A maioria dos economistas discorda. Mesmo antes dos números sobre o PIB, a forte sobrevalorização do real já mostrava que o BC vinha exagerando na dose dos juros. O governo, entretanto, prefere seguir a doutrina caduca que prega a intervenção do Estado a atacar a raiz do problema. E, assim, para minorar a valorização do real, prefere comprar dólares a cortar a Selic.

Vale lembrar que, se a onda contra ou a favor da moeda nacional é forte, acaba por romper o dique de proteção oferecido pelas intervenções do BC. Ainda nos lembramos que, na época do câmbio semifixo, não houve intervenção que impedisse o real de despencar em fevereiro de 1999. Agora, se o câmbio flexível se move em direção indesejada, o melhor remédio seria mudar a taxa de juros básica.

Desde 2003, dois fatores se combinaram para valorizar o real. Em primeiro lugar, a fuga do dólar no mundo inteiro ¿ fuga que deriva da baixa taxa de juros norte-americana, cuja contrapartida é um excesso de liquidez internacional e uma queda do risco dos emergentes.

Em segundo, desde 2003, uma forte melhora de nossos termos de intercâmbio (o aumento do preço em dólares de nossas exportações em relação ao preço das importações) fez crescer o dispêndio em produtos brasileiros e a taxa esperada de juros. Além disso, o aumento do superávit comercial reduziu a vulnerabilidade externa e estimulou a demanda por ativos brasileiros, contribuindo assim para a valorização do real.

Diante desse quadro, e considerando o impacto muito claro da taxa de câmbio na inflação brasileira, o BC poderia ter aproveitado o espaço criado pela valorização do real para cortar a Selic com mais força em 2005. Uma Selic mais baixa diminuiria o apetite do capital especulativo e evitaria uma valorização exagerada. Nem por isso impediria alguma valorização, dádiva da queda do risco dos emergentes e do desempenho das exportações. Mesmo menor, a valorização ainda teria efeitos benéficos sobre a taxa de inflação e a composição da dívida pública.

O teste-padrão para saber se a política monetária é restritiva compara a taxa de juros nominal e a de crescimento nominal do PIB. Se a taxa de juros excede o crescimento nominal, a política monetária está apertada. Pois, se o retorno dos ativos financeiros excede a taxa de crescimento do PIB nominal (que serve como um cálculo aproximado da média da taxa de retorno dos investimentos produtivos), o setor privado prefere manter seu dinheiro nos bancos e comprar títulos do governo a investir em atividades de risco.

Mas, no Brasil, enquanto a política de juros altos restringe os investimentos, a promoção do crédito consignado contraria a restrição monetária e promove o consumo. Assim é que, no último trimestre, o consumo cresceu, enquanto o investimento caiu 0,9%.

Essas contradições são inevitáveis num governo dividido e cujo presidente do BC declara que a taxa Selic não afeta o câmbio nem o crescimento. Se assim é, falta explicar qual mecanismo de transmissão monetária permite à Selic afetar a taxa de inflação. Ou Henrique Meirelles está errado ou o único efeito da Selic alta é sobre o peso da dívida. Se Meirelles acredita no que diz, não deveria manter a taxa de juros nas alturas.

O resultado dos desencontros dos ministros de Lula é deixar nosso barco na lanterninha dos outros emergentes. E os números do IBGE divulgados na quarta-feira devem complicar ainda mais a política econômica ao fortalecer a ministra Dilma Rousseff. Ela estava errada ao abrir a guerra contra a austeridade fiscal de Palocci. E deve errar outra vez se tentar usar os números do PIB para forçar um aumento dos gastos públicos. Pois tal medida apenas perpetua a armadilha dos juros altos que contrabalançam uma política fiscal inadequada.

O ceticismo dos brasileiros começa a se fazer notório. O instituto de pesquisa chileno Latinobarômetro revela que o brasileiro valoriza menos a democracia do que os cidadãos de outros oito países latino-americanos usados na comparação. Tem menos fé na eficácia da lei. E, mais do que os outros latino-americanos, suspeita que o governo faz mau uso da receita tributária.

Some-se a tais incertezas a crise política que já dura seis meses, e está pronto o cenário que prejudica o investimento produtivo e pode deixar o País à deriva, como O Barco Bêbedo (Le Bateau Ivre), de Arthur Rimbaud.

Num jogo de sons, ritmos e associações inesperadas, Rimbaud se descreve a si mesmo como um barco levado pela corrente do rio ao encontro do mar violento. Ébrio da euforia que nasce da liberdade, desafia o perigo e termina naufragando. Finda a odisséia, o barco espatifado quer apenas a água da bacia, onde uma criança lança um barquinho frágil como uma borboleta.

No poema de Rimbaud, a lucidez vence a esperança. No Brasil, teremos de esperar para saber se ainda existe espaço para a sensatez ou se os números do IBGE vão criar uma onda de apoio a gastos eleitoreiros que podem destroçar o esforço (ainda que capenga) dos últimos anos.