Título: Brasileiros tiveram importante atuação
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/12/2005, Nacional, p. A30

Papel da delegação na preparação da pauta do concílio foi modesto, mas fundamental em votações que revolucionariam a Igreja

Missa em português, diaconato permanente, participação da mulher, admissão dos recasados nos sacramentos e o fim do celibato obrigatório para os padres ¿ essas foram algumas das propostas que um grupo relevante de bispos brasileiros enviou a Roma, quando o papa João XXIII mandou perguntar ao episcopado do mundo inteiro quais eram as expectativas com relação ao Concílio Ecumênico. Quem participou do Vaticano II, testemunham vários bispos, continuou a defender, nas quatro décadas seguintes, as posições que votou no plenário da Basílica de São Pedro. O cardeal Aloísio Lorscheider, arcebispo emérito de Aparecida (SP), ainda é partidário da ordenação de homens casados ¿ na prática, seria o primeiro passo para a dispensa do celibato.

Quanto à admissão de mulheres no sacerdócio, o cardeal acha que a discussão se tornou muito mais difícil depois de João Paulo II se ter declarado contra a idéia, mas gostaria que a proposta fosse analisada. ¿Se o papa não falou ex cathedra, e não falou, os teólogos devem ter a liberdade de continuar debatendo a questão¿, declarou d. Aloísio ao Estado, na manhã de 17 de novembro.

Se houver um Vaticano III, ou se o papa Bento XVI optar pela retomada da discussão de pontos em suspenso, o cardeal acredita que a Igreja vá se debruçar sobre teses novas. Bioética e moral sexual, por exemplo. ¿A doutrina da encíclica Humanae Vitae (na qual Paulo VI condenou a pílula) deve ser aprofundada¿, aconselha.

De 243 representantes do episcopado brasileiro que participaram de pelo menos uma das quatro sessões do Vaticano II, entre 1962 e 1965, ainda estão vivos 31, nenhum deles mais na ativa. Embora numerosa, a delegação do maior país católico do mundo desempenhou papel modesto na preparação da pauta a ser discutida. Os brasileiros tiveram, porém, participação importante na votação de propostas que revolucionariam a Igreja. Sem acesso às comissões e outros órgãos de direção, agiram nos bastidores, debatendo em encontros paralelos.

Dois nomes se destacaram ¿ o do franciscano frei Boaventura Kloppenburg, perito da Comissão Teológica, e o de d. Hélder Câmara, então secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ¿ pelo seu trabalho em Roma. O cardeal Aloísio Lorscheider elogia a dedicação acadêmica de frei Boaventura, mais tarde bispo de Novo Hamburgo (RS), e o empenho pessoal de d. Hélder.

¿Frei Boaventura anotava tudo o que se debatia no plenário e, quando viajávamos de volta ao Brasil, já trazia tudo redigido, era só entregar os originais à Editora Vozes¿, lembrou d. Aloísio em entrevista ao Estado, 40 anos depois. ¿Frei Boaventura publicou sobre o concílio cinco livros.¿

Diferente foi a atuação de d. Hélder, o bispo auxiliar do Rio que em 1964 foi promovido a arcebispo de Olinda e Recife. ¿D. Hélder foi um dos bispos que mais atuaram sem ter falado uma única vez no plenário e atuou de maneira muito variada e profunda¿, testemunha o cardeal d. Eugenio Sales, arcebispo emérito do Rio.

¿Como sempre foi de dormir apenas duas ou três horas, d. Hélder varava madrugadas escrevendo cartas com notícias do concílio que nós, seus amigos e discípulos, líamos no Rio¿, relata o sociólogo Luiz Eduardo Wanderley, na época militante da Juventude Universitária Católica (JUC). Foram 297 circulares, das quais 7 se perderam.

Os bispos, que eram 204 quando se instalou o concílio e 227 no encerramento, viajaram em bloco para Roma num jato da Panair do Brasil sem gastar um centavo. Obra de d. Hélder, que conseguiu oito vôos de cortesia, quatro de ida e quatro de volta, para cada sessão, primeiro com o presidente João Goulart e depois com o presidente Castelo Branco.

¿O governo nos deu o jato, mas não foi de graça¿, ressalva d. Antônio Fragoso, bispo emérito de Crateús (CE), que participou das quatro sessões. ¿Jango quis cobrar, pois escreveu aos bispos pedindo que recomendassem o voto no presidencialismo (no plebiscito que acabaria com o parlamentarismo) em janeiro de 1963¿, revelou.

SURPRESA

A convocação do Vaticano II surpreendeu a Igreja quando João XXIII anunciou a decisão. Houve um silêncio geral e uma tentativa de boicote. O então recém-nomeado bispo Aloísio Lorscheider ouviu uma confidência do papa:

¿O senhor certamente soube o que aconteceu em 25 de janeiro de 1959, na sala do consistório, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, quando anunciei a reforma do Direito Canônico, o sínodo de Roma e a intenção de convocar o Concílio Ecumênico. Ninguém aplaudiu. Diante da reação dos cardeais, eu me perguntei: o que é que eu fiz?¿

O secretário de Estado, cardeal Domenico Tardini, garantiu que todos estavam satisfeitos, entusiasmados, e o papa não tinha por que se preocupar. ¿Mas houve resistência. Pessoas da Cúria Romana achavam que a reunião seria inútil¿, lembra d. Aloísio.

Tardini mandou uma carta-consulta a 2.594 bispos para saber o que eles esperavam do concílio. Entre os 1.998 que responderam, contavam-se 132 brasileiros, de um total de 167 consultados. Eles sugeriram reformas corajosas. Algumas foram aprovadas, como a renovação da liturgia, que acabou com o latim nas missas. Outras não saíram do papel.

Os bispos podiam falar no plenário ou apresentar suas sugestões por escrito. D. Eugenio redigiu suas propostas em latim. Tratou, por exemplo, do papel da mulher na liturgia, a partir de uma experiência pioneira em Nísia Floresta (RN), onde havia confiado a freiras a direção de uma paróquia.

Na Domus Mariae, onde a maioria dos brasileiros se hospedava, houve 93 palestras de grandes teólogos sobre o que se discutia no plenário. Ao fim, um dos organizadores, Luiz Baraúna, então frei Guilherme, publicou os textos mais importantes e levou um exemplar para Paulo VI. O papa elogiou o trabalho, mas recomendou que, numa futura edição, fosse alterado o original de dois autores. Um deles era o alemão Joseph Ratzinger, hoje Bento XVI.