Título: França precisa de `discriminação positiva¿
Autor: Nicolas Sarkozy
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/12/2005, Internacional, p. A28

A onda de violência que sacudiu as grandes aglomerações urbanas da França lança uma luz crua sobre as falhas de nosso modelo de sociedade. Em face desses acontecimentos, seria preciso primeiramente restaurar a autoridade do Estado e proteger nossos concidadãos, a começar pelos mais vulneráveis. Nada pode de fato justificar os extravasamentos inadmissíveis que testemunhamos. Nenhuma dificuldade social autoriza destruir um carro alheio, incendiar creches e escolas, espancar até a morte seu vizinho ou agredir as forças da ordem. Os autores desses crimes e delitos devem ser reprimidos sem brandura.

Mas, no pano de fundo desses acontecimentos, pode-se ver perfeitamente que certos territórios urbanos concentram todos os males que não soubemos ou não quisemos enfrentar por 30 anos: o desemprego em massa, o aumento da imigração, o fracasso escolar e a paralisação do elevador social. Apesar dos gastos sociais em constante progressão ¿ quase 500 milhões hoje, ou 8 pontos do PIB a mais do que em 1981 ¿, e a despeito da sucessão de planos de emergência que engoliram mais de 40 milhões desde a criação da política da cidade, nossos banlieus (bairros de periferia) mergulharam inexoravelmente na crise. Um em cada dois jovens sem emprego, três em cada quatro crianças chegando ao terceiro ano escolar com pelo menos um ano de atraso, seis vezes mais alunos tendo interrompido seus estudos aos 18 anos de idade ¿ estas são as tristes estatísticas de nosso fracasso.

Há com certeza alguns jovens dos bairros sensíveis que conseguem, ao preço de uma tenacidade incrível, cursar com sucesso estudos superiores. Mas reconheçamos que seu acesso a um emprego correspondente a suas qualificações ou a um alojamento se choca muitas vezes com uma nova barreira, a dos preconceitos e, às vezes, do racismo. A taxa de desemprego dos filhos de imigrantes que receberam formação superior é, assim, duas vezes mais alta que a dos demais trabalhadores ativos de mesmo nível.

Na falta de perspectivas confiáveis de integração e de promoção para seus habitantes, esses bairros tiveram a tendência a fechar-se em si mesmos, refugiar-se numa contra-sociedade com códigos próprios, regras próprias e, inclusive, língua própria. Eles se organizaram cada vez mais à nossa margem e cada vez menos conosco.

Não podemos continuar aceitando que um número crescente de indivíduos seja condenado a destinos escritos de antemão. E não podemos mais simplesmente invocar princípios que, como a igualdade de oportunidades, não são mais realidades tangíveis para muitos de nossos compatriotas. Esses princípios ainda precisam ser revividos e traduzidos em atos para que se inscrevam de novo nos fatos. Proclamar a igualdade diante da lei não basta: convém doravante promover também a igualdade pela lei.

Quando advogo a discriminação positiva à francesa, é precisamente a essa política ativa de igualdade real que me refiro, é uma certa idéia da justiça e da igualdade real pelo direito que defendo. O que me anima é a ambição de oferecer a cada um de nós, seja qual for o lugar de nascimento e de residência, as possibilidades efetivas de florescimento e realização que o indivíduo está no direito de desejar para si e para seus filhos.

Terminemos de uma vez por todas com esse rumor absurdo segundo o qual eu seria partidário do comunitarismo e das cotas étnicas. Não é essa minha visão da nação francesa que tem como uma de suas especificidades mais marcantes, justamente, querer integrar todas as populações numa única comunidade de valores e de destino.

Terminemos igualmente com essa idéia que gostaria que a discriminação positiva que proponho conduzisse a isentar seus beneficiários de qualquer esforço. Pelo contrário, para aqueles cujas condições objetivas de sucesso são muito degradadas, trata-se de agir de modo que o esforço tenha um novo sentido e o mérito seja enfim recompensado. Desse ponto de vista, as iniciativas tomadas pela Sciences Po Paris (Fundação Nacional de Ciências Políticas) e outros de se abrir para os melhores alunos dos liceus situados em Zonas de Educação Prioritária (ZEPs) me parecem perfeitamente de acordo com o ideal republicano. Em suma, a noção de discriminação positiva foi formulada há alguns anos pelo Conselho de Estado para designar todas as políticas visando a fazer mais pelos que têm menos.

Penso particularmente nos empregos ajudados, nas medidas em favor da paridade entre homem e mulher, nas ações relativas à inserção das pessoas deficientes ou ainda no ordenamento do território, que consiste em se mobilizar mais para ajudar os territórios que acumulam desvantagens geográficas, econômicas ou sociais.

O território me parece ter se tornado, aliás, um dos fatores mais estruturantes da reprodução e da ampliação das desigualdades. Nossa política de ordenamento do território deve com toda urgência reinvestir nessa questão e imaginar respostas adaptadas. No quadro de minhas atribuições ministeriais, terei proximamente a ocasião de fazer propostas nesse sentido. Nossa ambição na matéria não deve se limitar às zonas rurais. Deve tratar também das aglomerações urbanas e, particularmente, das periferias.

Mas essa abordagem na ótica dos territórios não basta. Ela deve ser completada por uma abordagem na ótica das pessoas. Seria profundamente injusto ajudar indistintamente os indivíduos que se esforçam e os que persistem em não fazer nenhum esforço, entre os que respeitam as regras da vida comum e os que as burlam. Só se deve ajudar de fato os que querem sair dessa situação.

A nobreza da política é hierarquizar as prioridades e fazer escolhas. É optar por ajudar mais tal departamento rural do que os Hauts-de-Seine, mais tal cidade pobre do que Neuilly, mais tal criança de La Courneuve ou de um bolsão industrial do que tal aluno dos bairros elegantes de Paris. E se por esse viés nós atingimos muitos filhos ou netos de imigrantes, isso é normal. Eles são franceses e seu futuro está na França.

Evidentemente, as empresas, a começar pelas maiores, devem trazer uma contribuição fundamental para o desbloqueio do elevador social em nossas periferias mais desfavorecidas. Algumas já manifestaram sua vontade de agir. E eu só posso encorajá-las a ir mais longe. Os serviços de emprego devem se organizar para acompanhar essa mobilização. Reforçando sua presença e adaptando suas intervenções nos bairros difíceis. Não hesitando em apelar para prestadores de serviço privados que deram prova de sua eficiência na inserção ou reclassificação de públicos específicos. Mas, se quisermos que o setor privado se envolva nesse campo, o setor público ¿ e, em particular, o Estado ¿ devem ser exemplares.

O Estado deve voltar a ser o vetor da promoção social que foi no passado, afirmando-se como o primeiro ator da grande política de discriminação positiva que conclamo em minhas promessas ¿ antes de mais nada, criando as condições que permitam aos alunos mais merecedores exprimirem toda sua potencialidade e prosseguirem em seu percurso escolar.

Por que não generalizar os internatos de excelência cuja iniciativa eu tomei nos Hauts-de-Seine, a fim de oferecer a esses alunos um quadro de trabalho que melhore suas chances de sucesso? Por que não imaginar um forte aumento da remuneração atualmente paga aos professores que aceitam postos nos bairros mais difíceis para atrair e reter nestes os mais motivados e mais experientes? Por que não reservar nas classes preparatórias das grandes escolas alguns lugares para os melhores alunos das Zeps?

Aliás, são muitas as famílias que não têm hoje outra escolha senão residir em Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS). Devemos criar para elas as condições de uma verdadeira mobilidade residencial. Por que não reservar para as pessoas egressas desses bairros, durante cinco anos e em cada bolsão de vida, uma porcentagem dos lugares disponíveis nas Habitações de Aluguel Moderado que se situam fora das ZUS? Isso é perfeitamente possível porque 75% dos alojamentos sociais não se encontram nas ZUS. Basta querer. Seria possível também imaginar o aumento de certos auxílios para a moradia a fim de oferecer a seus beneficiários uma verdadeira liberdade de escolha de sua habitação. Tudo isso pressupõe, mais amplamente, aumentar e diversificar a oferta de moradia, tanto nas periferias sensíveis como nos bairros residenciais e de centro de cidade.

Por fim, o modo de recrutamento clássico da administração francesa é por concurso. Ele deve permanecer. Mas hoje alguns partem de tão longe que não têm nenhuma chance de passar nos concursos. Além disso, poderíamos desenvolver bolsas de serviço público destinadas a financiar os estudos dos alunos mais merecedores das ZEPs, desde que eles se engajem em passar num concurso da função pública. É possível também conceber ciclos preparatórios remunerados para estimular os estudantes egressos de meios modestos a prosseguirem seus estudos.

Na posição em que me encontro, resolvi passar sem demora da teoria à prática. Assim, encaminhei juntamente com os serviços do Ministério do Interior um plano de ações para diversificar nosso recrutamento. A partir do próximo ano, preparações integradas para concursos dos diferentes corpos da polícia, de gendarmes e da defesa civil serão criados.

É possível imaginar dispositivos mais ambiciosos. O princípio de acesso igual aos empregos públicos não se opõe absolutamente a que as regras de recrutamento para o serviço público sejam diferenciadas para levar em conta a variedade tanto dos méritos a considerar quanto das necessidades do serviço público.

A administração poderia recrutar seus agentes mais em função da capacidade e das aptidões profissionais dos candidatos do que por seus diplomas universitários e seu sucesso em provas teóricas que tendem a favorecer os que provêm do meio afluente.

Por que não instaurar um quarto concurso reservado para as pessoas originárias das zonas urbanas e das regiões industriais mais sensíveis? Seria um dispositivo temporário, editado no quadro das possibilidades de experimentações abertas pelo artigo 37-1 da Constituição.

Se todos nos mobilizarmos, se todas as administrações, grandes empresas, estabelecimentos de ensino superior se engajarem, se todos os responsáveis políticos fizerem a escolha da ação, então, tenho a convicção de que poderemos mudar a situação e avançar de novo na via da igualdade real, aquela que está inscrita nos frontões de nossos edifícios públicos.