Título: Como livrar a cara na retirada
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/12/2005, Internacional, p. A26

Uma análise da história pode mostrar aos EUA que, no caso do Iraque, uma saída à francesa, como na Argélia, pode parecer vitória

Na velha canção popular sobre o tumulto causado pelos americanos em New Orleans durante a Guerra de 1812, o britânicos ¿correram tão depressa que os cães de caça não conseguiram encontrá-los¿. Mesmo permitindo uma hipérbole patriótica, dificilmente se pode argumentar que os britânicos se livraram com uma grande dose de dignidade, particularmente dado o fato de que uma outra batalha dessa mesma guerra inspirou o hino nacional americano. O impacto dessa derrota sobre a psique nacional britânica é agora obscuro, mas quase dois séculos depois, quando os americanos e seus aliados britânicos querem se livrar do Iraque, a história de como uma superpotência procura uma saída digna de um conflito externo confuso e impopular se transformou numa espécie de gênero histórico. Com o aumento da pressão para que as forças dos Estados Unidos abandonem o Iraque, esse gênero está recebendo uma nova e premente atenção.

E, à sombra das notícias sombrias e muitas vezes horrendas que surgem do Iraque quase diariamente, historiadores e especialistas políticos estão encontrando ao menos uma vaga esperança nessas analogias histórias imperfeitas.

Mesmo na ausência de uma repentina e drástica mudança no campo de batalha na direção de uma vitória definitiva, talvez ainda haja uma ligeira abertura, tão estreita como o buraco de uma agulha, para os Estados Unidos saírem do Iraque num futuro próximo de uma forma que não seja lembrada como um constrangimento nacional.

A maioria das comparações recentes parece não oferecer muita esperança para uma superpotência confusa que quer salvar as aparências no momento de suas perdas e voltar para casa. Entre elas estão a dolorosa retirada dos franceses da Argélia, as malfadadas aventuras de franceses e americanos no Vietnã, a humilhação soviética no Afeganistão e as desastrosas intervenções dos Estados Unidos em Beirute e na Somália.

Existem, porém, algumas poucas histórias de guerras não concluídas que deixaram os Estados Unidos numa situação mais digna, incluindo a presença contínua de soldados americanos na Coréia do Sul e a missão de pacificação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Bósnia. Mas mesmo essas fazem um contraste violento com o legado mais feliz de vitória total durante a 2ª Guerra Mundial.

O otimismo altamente qualificado desses especialistas sobre o que ainda pode acontecer no Iraque nasceu de muitos fatores, incluindo uma redução bastante grande nas expectativas do que pode constituir uma não-derrota lá. Os Estados Unidos já parecem dispostos a se conformar ¿ como se isso fosse um relacionamento que azedou, mas que não pode ser resolvido com uma saída pela porta, marcada por uma batida de porta satisfatória.

Junto com o amortecimento das esperanças, existe também uma quantidade justa de revisionismo histórico, considerando os eventos mais sombrios de conflitos passados ¿ uma sensação de que, se as superpotências tivessem tomado decisões diferentes, as coisas poderiam ter resultados mais palatáveis e elas ainda continuariam no Iraque.

Talvez não surpreendentemente, o Vietnã é o foco de algum do revisionismo mais interessante, incluindo parte dele pertinente ao Iraque, onde o esforço intensivo para treinar as forças de segurança iraquianas para defender seu próprio país se parece muito de perto com o programa de vietnamização no Vietnã do Sul.

Se o Congresso americano não tivesse cortado o financiamento para o Vietnã do Sul e suas Forças Armadas em 1975, argumenta Melvin R. Laird numa artigo incisivo na atual edição da revista Foreign Affairs, Saigon talvez nunca tivesse caído.

¿O Congresso arrancou a derrota da boca da vitória ao eliminar os fundos para nosso aliado em 1975¿, escreveu Laird, que foi secretário da Defesa do presidente Richard Nixon de 1969 a 1973, quando os Estados Unidos retiraram centenas de milhares de soldado do Vietnã.

Numa entrevista, Laird reconheceu que a partida dos Estados Unidos do Vietnã não foi uma bela visão. ¿Droga, as fotos deles entrando naqueles helicópteros não foram fotos agradáveis¿, disse ele, referindo-se à caótica retirada da embaixada americana dois anos depois de concluída a vietnamização e um ano após a renúncia de Nixon. Mas tomando por base sua hipótese sobre o Vietnã, Laird acredita que nem tudo está perdido no Iraque.

¿Há uma saída digna e acho que é a iraquização das forças de lá¿, disse Laird, ¿e acredito que estamos no caminho certo¿.

Muitos analistas têm contestado o núcleo desta alegação, dizendo que grande parte das forças de segurança iraquianas é tão inepta que talvez nunca seja capaz de defender seu país contra os insurgentes sem o respaldo militar dos Estados Unidos. E Laird não é o único no seu revisionismo e na sua possível aplicação no Iraque.

William Stueck, que é professor de História da Universidade da Geórgia e já escreveu vários livros sobre a Coréia, considera-se um liberal, mas diz que aceita a análise básica de Laird sobre o que deu errado na vietnamização.

A Coréia mostra como é fácil descartar a eficácia das forças de segurança locais prematuramente, disse Stueck. Em 1951, o general Matthew Ridgeway sentiu uma frustração profunda quando ofensivas chinesas romperam as linhas defendidas por soldados sul-coreanos mal orientados.

No verão de 1952, porém, com treinamento intensivo, os sul-coreanos estavam lutando com maior eficácia, disse Stueck. ¿Mas precisaram de respaldo por parte dos americanos¿, disse ele. Em 1972, soldados sul-coreanos eram responsáveis por 70% da linha de frente.

É claro que existe uma enorme diferença entre o Iraque e a Coréia. A sociedade coreana não estava crivada de facções problemáticas como está o Iraque, e os Estados Unidos estavam defendendo um governo existente em vez de tentarem criar um governo partindo do zero.

Uma outra lição intrigante embora imperfeita pode ser extraída da Argélia, disse Matthew Connelly, um historiador da Columbia University. Lá, em março de 1962, os franceses estavam se retirando após 130 anos de ocupação.

A longa ocupação colonial e os milhões de colonos europeus que viviam lá antes do êxodo sangrento constituem um grande diferença em relação ao Iraque, observou Connely.

Mas há também coincidências surpreendentes ¿ a insurgência, que delineou sua causa como uma jihad (guerra santa) internacional, irrompeu numa guerra civil assim que os franceses saíram. Já os franceses, disseram que sua luta era para proteger a civilização ocidental contra o islamismo radical.

Como acontece com o presidente americano, George W. Bush, no Iraque, o ex-presidente francês Charles de Gaulle provavelmente pensou que podia acomodar a Argélia a seu favor por meios militares, disse Connelly. No curto prazo, isso resultou num grave erro de cálculo, quando a ocupação ruiu debaixo da intensidade da insurgência.

Mas no longo prazo, a história tratou De Gaulle bondosamente por reverter o curso e concordar com a retirada, disse Connelly. ¿De Gaulle perdeu a guerra mas a venceu no domínio da história ¿ deu à Argélia a sua independência¿, disse ele. ¿Dependendo de como você conceber a derrota, às vezes isso pode lhe dar uma vitória.¿

Os americanos em Beirute e os soviéticos no Afeganistão são vistos, mesmo no longo prazo, como casos de superpotências que pagaram o preço de se intrometerem num atoleiro político e social do qual não entendem.

No caso dos soviéticos, esse erro foi intensificado quando os americanos equiparam os rebeldes afegãos com mísseis Stinger, capazes de derrubar helicópteros, anulando uma superioridade militar soviética fundamental. ¿Não acredito que eles tenham tido qualquer tipo de desculpa¿, afirmou Henry S. Rowen, membro do Instituto de Estudos Internacionais, em Stanford. Ele foi secretário-assistente da Defesa para assuntos de segurança internacional de 1989 a 1991. ¿Eles simplesmente partiram.¿

Em Beirute, os americanos entraram para proteger o que consideravam um governo legítimo comandado por um cristão e acabaram, de forma muito parecida com o que está acontecendo no Iraque, embrenhados num conflito civil de múltiplos aspectos.

Em outubro de 1983, um ataque suicida matou 241 funcionários civis americanos num acampamento dos fuzileiros navais.

Quatro meses depois, com o avanço das milícias muçulmanas, o presidente Ronald Reagan ordenou que os fuzileiros restantes se retirassem para os navios ancorados fora da costa, simplesmente dizendo que a missão deles tinha mudado. Esse episódio foi citado pelo vice-presidente Dick Cheney como exemplo de uma retirada que levou os militantes árabes a pensaram que os Estados Unidos são fracos.

Hoje, mesmo com a continuidade da queda das expectativas para o Iraque, algum grau de vitória pode ainda ser declarada mesmo num desfecho menos que perfeito, disse Richard Betts, diretor do Instituto Saltzman de Estudos sobre a Guerra e a Paz da Universidade de Colúmbia. Por exemplo, acrescentou ele, um governo iraquiano autoritário mas não totalitário, talvez sirva.

O ponto-chave nessa questão, acrescentou ele, é que diante dessas circunstâncias, o desfecho ¿não pareça um desastre mesmo que não pareça bom¿.