Título: Uma crise com mala, cueca, jipe e bengala
Autor: Marcelo de Moraes
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/12/2005, Nacional, p. A8

Escândalo é marcado pela comédia de cenas e símbolos que parecem irreais

BRASÍLIA - No escândalo deflagrado por um político cantor de ópera que já teve malas de dinheiro circulando entre os partidos, dólares escondidos na cueca e jipe de R$ 70 mil como agrado a um dirigente do PT, o que mais poderia surgir? Uma bengalada no ex-todo-poderoso ministro José Dirceu, na véspera da sessão da Câmara que cassou seu mandato de deputado. A crise que abalou o governo Lula nos últimos cinco meses é marcada pela tragédia das cassações, das demissões, das juras de inocência e das tentativas desesperadas de escapar da degola, mas também pela comédia das cenas e dos símbolos que parecem fora da realidade.

O que dizer de um empresário suspeito de corrupção que diz não lembrar de declarações gravadas que deu, porque estava bêbado de "chope e cachacinha". Ou do advogado que alega sofrer da "doença da compulsão por gastar" para justificar o fato de ter sacado R$ 1,9 milhão em tempo recorde? E ainda do pânico causado no meio político quando se espalhou o boato de que a empresária do ramo de festas animadas por belas moças Jeane Mary Corner contaria tudo que sabe?

GALHOFA

"Eu vejo os depoimentos nas CPIs e acho que estou ouvindo uma piada. As crises em geral chegam a um nível de saturação que acabam virando humor, folclore. A crise de agora é pródiga em coisas que fazem descambar para a galhofa. Basta falar no assessor que escondia dinheiro na cueca", diz o publicitário Elísio Pires.

ANESTÉSICO

O publicitário lembra que é próprio do brasileiro o deboche e a ironia, mas tem medo que resulte em desinteresse pela questão principal: os indícios de um gigantesco esquema de corrupção envolvendo o governo e os partidos aliados. "O humor é anestésico. Rir da própria desgraça é perigoso, porque daqui a pouco não se chora mais", filosofa com seriedade Elísio Pires, que, no entanto, não resiste a conferir na internet as piadas mais recentes do escândalo.

O marqueteiro diverte-se com charges como a criada pelo site kibeloco.com.br logo depois que o escritor Yves Hublet, o senhor de barba branca que deu as bengaladas em Dirceu, em plena Câmara dos Deputados, na terça-feira, quando assessores do deputado se ocupavam em distribuir um panfleto rebatendo cada acusação.

"Jipe, mala, cueca. Eu tenho uma gastrite que vai virar úlcera, se eu ficar acompanhando tudo isso", afirma o senador Mão Santa (PMDB-PI), médico que se diz "bom conhecedor da psicologia de massa". O senador tem uma interpretação para a bengala: "É o símbolo de todos os aposentados, que foram tão maltratados pelo governo. Se a Câmara não cassasse Dirceu, cada deputado ia levar bengalada no meio da rua."