Título: Contra a parede, petismo discute futuro pós-Dirceu
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/12/2005, Nacional, p. A6

Enquanto líderes da esquerda se dividem quanto ao impacto da cassação do ex-ministro, oposições acreditam que recuperação do PT não será rápida

BRASÍLIA - Com os dedos em V, de vitória, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), folclórico representante da extrema-direita no Congresso, foi o único parlamentar a festejar publicamente a cassação do deputado José Dirceu. Na madrugada de quinta-feira, quando a contagem de votos se encerrou, os demais políticos foram embora em passadas vagarosas, como se tivessem acabado de assistir a um evento histórico. A queda do deputado José Dirceu divide águas no PT e coloca em debate as opções de sobrevivência da esquerda brasileira.

Guerrilheiro tardio, que entrou na luta armada quando os assaltos a banco só pretendiam garantir a sobrevivência dos últimos militantes, Dirceu tornou-se personagem de outra estatura quando liderou o ingresso da geração de 68 no PT. Inventou a Articulação, corrente que venceria a esquerda do partido em todos os confrontos importantes. Elaborou e defendeu a política de alianças que levaria Lula ao Planalto, num episódio que, em seu tempo, foi considerado um acontecimento único na política brasileira. Centralizador, secretivo, constituiu um partido dentro do partido, integrado por uma rede de militantes e assessores fiéis. Presidente do PT entre 1995 e 2002, teve conhecimento direto com a maioria das denúncias de corrupção envolvendo a legenda. Não há registro de nenhuma punição em função disso. Mas seu amigo e colega de 1968, Paulo de Tarso Venceslau, acabou expulso do PT depois de denunciar um esquema de desvio de recursos das prefeituras.

A queda de Dirceu é um ponto culminante de uma crise enfrentada pela esquerda brasileira, a mais devastadora desde a democratização do país.

"Estamos contra a parede", reconhece o deputado Jamil Murad (PC do B-SP). Herói da derrubada de Severino Cavalcanti, o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) rompeu com o governo Lula logo depois da posse.

Gabeira tem participado de conversas nas quais parlamentares do PT comparam a crise do mensalão com a catástrofe que atingiu o Partido Socialista Operário Espanhol, PSOE, na agonia do reinado do primeiro-ministro Felipe González. O partido naufragou em denúncias de corrupção e diversos dirigentes foram presos. Quase uma década depois, sob o impacto das bombas da Al-Qaeda em Madri, o PSOE voltou ao poder. Gabeira adverte: "Se os petistas pensam que poderão se recuperar com facilidade, estão enganados. O PSOE ficou dez anos fora do poder. E só conseguiu vencer a eleição graças a um erro absurdo do partido conservador, que tentou manipular as investigações sobre o atentado e atribuiu a culpa aos membros da ETA. O eleitor ficou indignado."

A queda de Dirceu ajuda a lembrar que a política é aquele reino onde vigora a lei segundo a qual todo rei morto é sucedido por um rei posto. Ele sempre será uma voz ouvida no partido, mesmo que resolva abrir uma pousada em Santa Catarina. Mas seu tempo de dirigente máximo já passou. "Tivemos o desfecho previsto desde que o José Dirceu saiu da Casa Civil", afirma o prefeito de Aracaju, Marcelo Deda. "Agora temos de virar a página e encarar o futuro." Colocado em posição de relevo, como um dos últimos dirigentes reconhecidos nacionalmente pelo partido que não foi massacrado no mensalão, como José Genoino e o próprio Dirceu, o senador Aloizio Mercadante faz a linha heróica: "É triste perder um militante com quatro décadas de dedicação ao País. Mas algumas crises servem de aprendizado. O PT vai sair melhor e mais forte." Há dúvidas.

Nascido no vento que derrubou a ditadura militar, o PT transformou-se numa fortaleza única da esquerda brasileira. Esvaziou o Partido Comunista Brasileiro e também fechou o caminho para organizações menores que pretendiam disputar o mesmo eleitorado. Crítico do populismo e também das mazelas das ditaduras comunistas na Europa do Leste, era um partido audacioso e inovador, postura abandonada com o peso dos anos. Hoje o partido vive uma situação interna de guerra civil entre lideranças com ambições demais e carisma de menos.

Dias antes de Dirceu perder o mandato, a esquerda sofreu uma derrota num campo estratégico, a reforma agrária. A CPI da Terra fez um relatório classificando as invasões como "crime hediondo". Outra derrota ocorreu no plebiscito sobre armas, em outubro. "Nossas teses deixaram de ser hegemônicas", afirma Jamil Murad. Um dos líderes da oposição, o deputado Alberto Goldman (PSDB-SP) argumenta que, paradoxalmente, a esquerda enfrenta sua maior crise quando está no poder: "O PT errou tanto que isso permitiu que os conservadores dessem as cartas." Goldman diz: "Não concordo com a idéia de que invasão é crime hediondo. Pode ser sobrevivência. Mas o PT só queria dar dinheiro público para o MST. Isso também não resolve."

Para onde vai a esquerda brasileira? Aloizio Mercadante diz que "enquanto houver desigualdade social, enquanto houver injustiça, haverá lugar para a esquerda." Num país onde não se formou uma tradição política reformista, capaz de estimular a produção de projetos viáveis, experimentar idéias e mostrar resultados, a esquerda foi convocada, no governo Lula, a enfrentar o decisivo teste da vida prática.

"O principal aprendizado do partido está sendo a experiência de governar", admite Mercadante. "A cultura da esquerda sempre foi fazer oposição e deixar a direita no governo. Agora a esquerda quer governar."

Mas esse governo faz políticas de esquerda? "Faz", responde Mercadante. "O governo Lula é a síntese de todas as políticas sociais de esquerda do passado." Goldman discorda: "A política social do governo é o Bolsa-Família. A origem do Bolsa-Família é o Fundo contra a Pobreza. Quem criou esse fundo foi o senador Antonio Carlos Magalhães. Você pode até achar que é uma proposta boa mas não dá para dizer que é de esquerda."

Para Gabeira, a crise pode ter a utilidade de encerrar aquilo que chama de "hipocrisia da política brasileira. A diferença entre esquerda e direita está cada vez menor e por essa razão a esquerda precisa da direita e vice-versa." O deputado acha que o desafio da esquerda, hoje, é aprender a viver nesse tempo em que as ideologias se tornaram mais flexíveis. "Você precisa aprender a fazer acordos e a respeitar seus aliados. Para isso não pode dispensar a ética."