Título: A crise dos Poderes
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/12/2005, Espaço Aberto, p. A2

Não são poucos os que defendem a idéia de que a crise política está pondo à prova a maturidade das instituições, sendo assim bastante naturais tensões entre os Poderes, como as que se vêem ultimamente. Quem defende o vigor da nossa democracia está enxergando, apenas, a liturgia institucional, pela qual os Poderes, de acordo com a repartição tripartite de funções preconizada por Montesquieu, desempenham suas atividades. Mas a qualidade de tal desempenho deixa a desejar, denotando que a crise política se configura também como a crise dos Poderes. O Executivo, origem das tensões, diminui a capacidade de executar; o Legislativo, ocupado com as atribuições fiscalizadoras e envolvido no jogo partidário, atropela a missão de legislar; e o Judiciário, chamado para mediar as partes em conflito, é acusado de combater o fogo com fogo. Para piorar, as paralelas dos Poderes, que deviam marcar encontro no infinito, cruzam-se na primeira curva, invadindo espaços que não são seus. É evidente que a tripartição de Poderes, louvada por Maquiavel (por dar mais segurança ao rei), inspirada por John Locke, que tomava como parâmetro o Estado inglês do século 17 e, posteriormente, delineada por teóricos liberais, como Montesquieu, no século 18, sempre deu oportunidade para uma instância interferir noutra. No Brasil, essa intervenção se faz mais forte, principalmente, em momentos de crise. A causa principal é o baixo desenvolvimento político, conseqüência da fragilidade das instituições, de corroídos padrões da política e, ainda, da insegurança doutrinária que permeia o próprio sistema judiciário. Veja-se a última sessão do STF que julgou a liminar impetrada por José Dirceu. Duas visões se confrontaram: uma, amparada na natureza política do processo, defendida pelo ministro Joaquim Barbosa; outra, balizada pela visão técnico-jurídica, defendida pelo ministro Celso de Mello. No meio de ambas se ouviu um linguajar jurídico que se fundia a um tom político carregado de emoção. Em matéria tão relevante, parecia inexistir definição clara quanto à competência do poder político para agir de forma autônoma e definição sobre necessidade de se cumprir o rito penal. A impressão era a de que víamos o limiar da instalação das Cortes.

Uma instituição é forte quando se adapta às circunstâncias e enfrenta novas situações sem se fragmentar. E é respeitada por todos. Assim deveria ser o Judiciário. Mas o STF acaba de receber dos próprios juízes, em pesquisa feita pela Associação dos Magistrados, a qualificação de menos eficiente e mais parcial instância da Justiça brasileira. Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua vez, navegam, há meio ano, na turbulência da crise, deixando de cumprir importantes funções constitucionais. Aos fatos. É escassa a pauta de providências administrativas, reuniões de trabalho, cobranças, acompanhamento de programas, que tenha no comando das ações a figura do presidente da República. É farto, porém, o calendário de eventos discursivos, a ponto de se registrar, a cada semana, uma expressão bombástica de Sua Excelência. A da semana passada foi a declaração de que, no atual governo, 1 quilo de arroz passou de R$ 11 para R$ 4,90. Queria se referir ao pacote de 5 quilos. Que custa, em média, nos supermercados de Brasília, R$ 6. Lula criticava a falta de exatidão dos números sobre o trabalho do governo, para concluir que o Brasil é "um país imaginário". Hilário. O ministro da Fazenda se dispõe a cantar louvores e a receber elogios em sessões de confraternização no Congresso. E aí aparece o recuo de 1,2% do PIB no terceiro trimestre, fato que contrasta com o horizonte azul pintado muitas vezes por Palocci.

O Brasil fantástico do governo é, portanto, questionável. As estradas continuam esburacadas. A promessa dos 10 milhões de empregos não sai do papel. Há, sim, a Pesquisa Nacional por Amostragem que mostra o País progredindo lentamente. Atribuir, porém, o pequeno avanço ao atual governo é como dizer que o Brasil foi descoberto por um ex-metalúrgico chamado Luiz Inácio. Vamos ao Parlamento. O que fez neste ano? Acendeu as fogueiras das CPIs. Mas a renúncia de deputados e a cassação de José Dirceu não serão suficientes para justificar o ano legislativo. Por isso, o presidente do Senado e o da Câmara, os alagoanos Renan Calheiros e Aldo Rebelo, decidem montar uma pauta substantiva, com temas "simples e consensuais" como reforma tributária, reforma política, lei das pequenas e microempresas, Super-Receita, Fundeb, etc. Não haverá tempo para aprovar em menos de um mês o que deixou de ser discutido e decidido em quase um ano. Mas esse é o Brasil que espera resolver tudo na última hora. E tome improvisação.

Chega-se, então, às portas do Judiciário. Dura constatação: este Poder perde credibilidade a olhos vistos. Pesa sobre alguns juízes a crítica de parcialidade na tomada de decisões. A mais alta Corte recebe a nota 3,7, numa escala de 0 a 10, no quesito independência em relação ao governo federal. A baixa qualificação parte de quem mais entende de Judiciário, os magistrados. O abuso pelo Poder Executivo de medidas provisórias para legislar, usurpando o poder originariamente concedido pela Constituição, tem passado ao largo do Judiciário, acusado de ser cúmplice na desfiguração da ordem jurídica. Sobre a figura do presidente do STF, ministro Nelson Jobim, corre solta a observação de que exprime fala com forte viés político. E ele faz esforço para confirmar a imagem de político que "está" magistrado. Diz-se que gosta de entremear a toga do juiz com a beca do advogado. Na já famosa sessão que presidiu na semana que passou, foi duro contra os "juristas de ocasião", a quem ofereceu a máxima de Nelson Rodrigues: "Hoje os idiotas perderam a modéstia."

O escárnio feriu os tímpanos do velho Bacon, que dizia: "Os juízes devem guardar-se das conclusões duras e das inferências desmedidas."

Gaudêncio Torquato, jornalista,

é professor titular da