Título: Filme rodado
Autor: CELSO MING
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/12/2005, Economia & Negócios, p. B2

O primeiro ato da nova ministra da Economia da Argentina, Felisa Miceli, foi convocar os supermercadistas para uma derrubada de preços seguida de congelamento que deverá durar pelo menos dois meses. Este é mais do que um indício de que a economia argentina está a perigo. Antes da nomeação da ministra, o presidente Kirchner já havia lançado torpedos preventivos para encurralar o setor: "Vocês (supermercadistas) se cartelizam e atentam contra o bolso dos argentinos. O governo vai se organizar e organizar os consumidores", avisou.

O drama imediato do governo Kirchner chama-se inflação, que corre a 10% ao ano, mas ameaça saltar para os 12% até final deste mês. Tem duas fontes: compra de legitimidade e falta de investimentos.

O presidente Kirchner assumiu em 2003 com apenas 22% dos votos. Para ganhar apoio, concedeu aumentos de salário e de aposentadoria. Nos quatro primeiros meses de seu mandato, o sistema produtivo reagiu favoravelmente à elevação da demanda com aumento de produção.

Até aqui não foi preciso investir para recuperar a produção que havia desabado 20% quando o sistema de conversibilidade implodiu em dezembro de 2001. Bastou rodar as máquinas antes ociosas. Mas os investimentos praticamente estagnaram, porque o empresário não confia. O calote em mais de 80% da dívida pública afugentou os investidores externos e os internos estão preocupados com o intervencionismo de Kirchner. Em março, compareceu à TV para pedir, ao vivo, o boicote a todos os produtos Shell, que havia aumentado os preços para acompanhar a alta do petróleo.

Como ficou dito aqui na coluna do dia 29 de novembro ("Lavagna vai para casa"), a ameaça de apagão é séria, porque não há mais capacidade de geração de energia e o fornecimento de gás está à beira do colapso.

Congelar preços sempre foi forte tentação dos políticos em situações assim. Julgam que algumas canetadas acompanhadas pelas chantagens de praxe garantem resultados rápidos.

Este é filme muito rodado no Brasil. Nos anos 70 e 80 prevaleceu esse tipo de política. Tivemos de tudo: Conselho Interministerial de Preços; superintendente da Sunab laçando boi no pasto; fiscais do Sarney; e prisão do proprietário do Hotel Maksoud Plaza por ter vendido coca-cola fora da tabela.

Congelar preços parece fácil. Na prática, é desastre anunciado. Como os preços são diferentes de um estabelecimento para outro, é difícil conseguir cortes homogêneos. Logo, é fácil tapear. Depois, congelamento na ponta do varejo exige congelamento nos estágios anteriores e o processo fica incontrolável.

Mesmo que o "acordo" seja observado, é difícil sustentá-lo porque os custos sobem na mesma proporção da inflação, os reajustes ficam represados e, quando fica inevitável, vem pancada sobre pancada. Em seguida, o assalariado e o aposentado correm atrás da recomposição de renda e a roda gira mais depressa. Produtos colaterais do sistema de congelamento de preços são o desabastecimento, artimanhas para ganhar as boas graças do fiscal, adiamento dos investimentos, redução da qualidade do produto, o quilo de 900 gramas... e por aí vai.

Muita gente por aqui inveja a situação da Argentina: apesar de passar o calote na dívida, segue crescendo a 8% ao ano e ainda exibe um índice de risco não muito diferente do risco Brasil. Por que, em vez de passar por todo esse sufoco, o Brasil não faz o mesmo? - perguntam.

O novo quadro pode produzir um efeito colateral valioso: esclarecer a esses brasileiros a verdadeira natureza da recuperação econômica argentina.