Título: A realidade do médico no Brasil
Autor: Cid Carvalhaes
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/12/2005, Espaço Aberto, p. A2

Estatísticas às vezes mentem; números, não - assim diz antigo ditado inglês. Segundo pesquisa divulgada pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, médicos com cursos de mestrado ou doutorado lideram o ranking dos profissionais mais bem remunerados do País. Podem atingir renda mensal média de até R$ 8.966,07. Os sem titulação em programas de pós-graduação (mestrado e doutorado) aparecem com remuneração média de R$ 6.705,82. Para alcançar esses índices o levantamento indica que médicos mais bem remunerados trabalham muito mais que os profissionais de outras áreas com os mesmos formação e salário. O volume do trabalho médico é de mais de 64 horas semanais, ou seja, além de 12 horas por dia. Afigura-se oportuno debater a realidade dos 280 mil médicos em atividade em todo o Brasil. Apenas 14% têm mestrado e 6,8%, doutorado, conforme dados divulgados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em sua última atualização sobre o perfil do médico no Brasil. Para receber os atuais ganhos os profissionais se sacrificaram ao longo da vida, investiram mais de 10 ou 11 anos de estudos (seis anos no curso de graduação e, no mínimo, três ou até mesmo cinco anos em programas de residência médica). Os que se graduam em cursos de mestrado e doutorado acumulam mais tempo de estudos formais, no mínimo, cinco anos além da residência médica para completá-los. Afeitos à carreira universitária, abriram mão do direito de ter uma segunda atividade e, assim,têm mercado de trabalho restrito ao serviço público. Além disso, quando se aposentam ou se afastam temporária ou definitivamente, passam a receber em média R$ 1.900 mensais, uma vez que os salários representam a soma de abonos e gratificações, que desaparecem nos cálculos da Previdência para efeito de aposentadoria. São os chamados "penduricalhos", artifícios acionados pelos governantes para, eles próprios, ludibriarem direitos trabalhistas consagrados.

A verdade é que a maioria dos médicos ganha mal, trabalha demais, em condições desumanas e ainda enfrenta dificuldades crescentes para se manter atualizada no mercado de trabalho. Alguns exemplos: o médico que trabalha para o governo estadual, em São Paulo, recebe R$ 2.400 e os que trabalham para a Prefeitura paulistana, R$ 2.600, com jornada de 20 horas semanais. Tais ganhos representam o acúmulo de todos os abonos, gratificações, incentivos, adicionais por lotação em áreas de difícil provimento, entre outros tantos "esticamentos" artificialmente colados aos salários. Devido às distâncias e às naturais dificuldades de deslocamento pelo trânsito nas grandes metrópoles, o médico perde horas para chegar ao local de trabalho, o que dificulta o acesso a uma segunda atividade.

A precariedade da estrutura da rede de saúde é um outro fator que causa revolta ao médico e ao paciente. Este, cansado de reclamar sem ser ouvido, acaba descarregando sua ira no médico. Pesquisa feita pelo Sindicato dos Médicos de São Paulo constatou que 41% dos profissionais já sofreram algum tipo de violência, física ou verbal, no ambiente de trabalho. A insensibilidade de alguns gestores públicos provoca a dura realidade de instalar em hospitais gerais unidades prisionais hospitalares, confinando áreas para atendimento de presidiários de alta periculosidade. Como exemplo, o Hospital Heliópolis, em São Paulo, invadido várias vezes, culminando com morte por arma de fogo de um dos invasores, no mês de julho. Os hospitais públicos lideram o ranking das agressões (77,1%), como também os atendimentos nas urgências e emergências, nas mesmas proporções. A violência deixou seqüelas em 39,03% das vítimas.

A situação não é diferente em outras cidades da Região Metropolitana de São Paulo, como Taboão da Serra, onde os médicos ganham bem menos, R$ 1.400 mensais líquidos, e enfrentam problemas semelhantes aos encontrados na capital. Este é um dos motivos por que o CFM constatou que 60% dos médicos em todo o Brasil consideram o exercício da profissão entre muito e totalmente desgastante. Para sobreviver a maioria trabalha para os planos e seguros de saúde. Há planos que pagam por uma consulta R$ 15, valor menor que o pago pelo paciente para estacionar seu carro nas imediações do consultório. Ademais, deve-se destacar prática usual dos planos e seguros de saúde, que, a despeito de controles por auditorias, simplesmente negam autorização para realização de procedimentos propedêuticos e terapêuticos, deixando os doentes à própria sorte e, destarte, suas doenças em evolução, às vezes inexoráveis.

Médicos são responsabilizados e, mesmo com todo o esforço despendido para esclarecimentos, ainda assim assumem preocupações relevantes ao se transformarem em espectadores macabros dos males dos seus pacientes, mercê da ganância desmesurada de empresários incautos. Já os médicos mantenedores de consultórios privados, os poucos que ainda conseguem ser profissionais autônomos, gastam mensalmente cerca de R$ 4.200 para manter suas instalações. Essa é a realidade do trabalho médico no Brasil. Realidade dura, sofrida, desgastante. Para sobreviver com dignidade semelhante a outros profissionais o médico é vítima de incontáveis atropelos a lhe imporem sacrifícios. Precisamos mudar.

Outro ponto de destaque, a formação indiscriminada de profissionais desprovidos dos conhecimentos essenciais para o exercício da arte hipocrática. De forma alarmante, presenciamos aumento preocupante do número de médicos oriundos de Faculdades de Medicina cuja qualidade de ensino é deficiente. De igual maneira se afigura a capacitação especializada. Exige-se especialização e os métodos para alcançá-la são ruins. A qualidade da medicina oferecida à população brasileira está relacionada com as precárias condições em que ela é praticada. Somos impelidos a modificar essa situação.