Título: Na era da incerteza
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/12/2005, Notas e Informações, p. A3

A única previsão que se pode fazer a esta altura sobre os rumos da política econômica no ano reeleitoral de 2006 é que eles deixaram de ser previsíveis. Há um mês, enquanto o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, era fustigado por denúncias que remontam ao seu tempo de prefeito de Ribeirão Preto e à sua atuação na campanha presidencial petista de 2004, o seu chefe ou aceitou ou incentivou a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, a tornar público o seu descontentamento e o de outros de seus pares com a avareza de Palocci na liberação das verbas orçamentárias do Executivo, para manter em patamar mais elevado do que o de 4,25% do PIB o superávit primário definido para este ano. Para a relação de forças no governo, o fato de diversos ministros se revelarem incapazes de gastar recursos de que já dispunham pesou muitíssimo menos do que a forma como a ministra acabou externando a sua oposição ao colega da Fazenda: numa entrevista-bomba ao Estado, não só equiparou a política de juros a "enxugar gelo", mas, sobretudo, investiu pesadamente contra o projeto estratégico da equipe econômica - o do ajuste de longo prazo -, qualificando-o de "rudimentar". A partir de então, segundo informações de bastidor que conferem com os fatos ostensivos, a relação entre Lula e Palocci deixou inequivocamente de ser o que era.

Esgarçou-se, da parte do presidente, o apoio irrestrito à orientação da qual o ministro declarou em público que não se desviaria - embora, depois de eloqüente relutância, Lula reiterasse a continuidade da diretriz econômica em curso e comparasse o seu mentor a Ronaldinho gaúcho, o maior craque do mundo. Da parte do ministro, deu-se o mesmo, com sinal trocado: ele deixou vazar que perdera a confiança no respaldo de Lula à orientação que continua a considerar a melhor para o Brasil. Sobre esse chão escorregadio desceu na semana passada a informação de que o PIB regredira 1,2% no terceiro trimestre - o que impedirá a reedição do "espetáculo do crescimento" de 2004.

Com o mais do que provável aval do presidente - para quem o que é bom para a reeleição é o que é bom para o Brasil, embora ele não saiba exatamente como garantir uma coisa e outra -, o seu companheiro Guido Mantega, presidente do BNDES, imitou Dilma. Numa entrevista à Folha de S.Paulo, embora cuidasse de preservar Palocci, culpou o Banco Central (BC) e o seu diretor de Política Econômica, Afonso Bevilaqua, pelo fiasco da variação trimestral do PIB - no que foi secundado por outro petista, o presidente da Petrobrás, Sérgio Gabrielli. Nesse ambiente de longos punhais, multiplicaram-se as versões desencontradas sobre os "ajustes" de que Lula passou a falar e sobre a convivência entre Dilma e Palocci.

Revelador de que ninguém embainhou as armas no Planalto, restando saber se continuarão a ser usadas em público - foi patético o esforço de figuras do governo para garantir que eles voltaram a se entender. "Os dois até trocaram beijinhos", disse uma fonte sobre o clima da reunião da Junta Orçamentária de que participaram, com o presidente e outros ministros, na segunda-feira. À parte os choques pessoais, políticos, eleitorais e ideológicos sobre o que mudar e o que manter na economia, o leque de escolhas sensatas do "remédio a mais ou a menos a ser dado", na tergiversadora expressão do ministro de Relações Institucionais, Jaques Wagner, é limitado.

A rigor, está mais claro o que não fazer - acelerar o ritmo de queda dos juros e, ao mesmo tempo, baixar substancialmente o superávit primário dos quase 6% registrados em outubro, o que seria um convite à inflação - do que o seu oposto. Isso não significa que, em tese, a flexibilidade da execução da política fiscal seja zero. Mas, no clima de queda-de-braço instalado no governo, agravado pelas tensões pré-eleitorais do presidente, as chances de que a racionalidade prevaleça, afinal, sobre o oportunismo não são lá muito animadoras. O ideal seria o presidente tranqüilizar os agentes econômicos dizendo o que fará - e, principalmente, o que não fará. Mas a sua margem política para tal é estreita. E as vicissitudes da disputa eleitoral não ajudarão a ampliá-la.

Outro fator de desassossego, lembrando a campanha de 2004 - antes da Carta aos Brasileiros -, é a possibilidade de Lula acenar com mais do que "inflexões" na política econômica para se reeleger. Isso, se até lá Palocci ainda estiver ministro.