Título: Mulher que recebeu novo rosto já fala e se alimenta
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/12/2005, VIda&, p. A39

Em coletiva, médicos do transplante inédito se defendem de acusações de falta de ética

Cinco dias após a cirurgia que implantou o nariz, o queixo e a boca de uma doadora morta no rosto de uma mulher desfigurada por uma mordida de cachorro, a equipe médica francesa responsável pelo feito inédito no mundo deu, ontem, uma entrevista coletiva à imprensa. Os médicos contaram que a paciente retomou consciência 24 horas após a operação, comeu chocolate e morangos e falou. Sua primeira palavra foi "merci" (obrigada). "Ela já viu seu rosto e está feliz", contou um dos chefes da equipe, Jean-Michel Dubernard, do hospital Edouard-Herriot, de Lyon. Os médicos garantiram que não houve complicações pós-operatórias, mas não descartaram os riscos de rejeição. Na quinta-feira, a paciente recebeu um transplante de medula óssea retirada da mesma doadora do rosto. A medula contém células que formam novas células que ajudam na reação imunológica contra tecidos alheios. Dubernard acredita que essa medida possa reduzir a quantidade de remédios imunossupressores que, em excesso, podem provocar câncer.

Sobre o acerto de cor e textura entre a pela da doadora morta e a da paciente, o outro coordenador da equipe, Bernard Devauchelle, que trabalha no hospital universitário de Amiens, onde a cirurgia foi realizada, afirmou que os resultados "ultrapassaram as expectativas". Só daqui a muitos meses, porém, o rosto da paciente retomará a sensibilidade. Ao sair do hospital ela provavelmente terá de fazer terapia com um psicólogo e um treinamento para reaprender a falar corretamente. Os médicos disseram também que não descartam a possibilidade de uma nova operação.

PISOU NO CACHORRO

Na entrevista, foi mostrado um vídeo em que a mulher aparece sentada de costas, com o rosto sendo examinado por um médico, antes da cirurgia e, depois, na cama já com nariz, lábios e queixo novos, cobertos por esparadrapos. O transplante durou 15 horas e contou com o trabalho de 50 pessoas. Além de tecido, a paciente recebeu músculos, artérias e veias que tiveram de ser costurados a seus próprios órgãos para voltarem a ser vascularizados.

A mulher de 38 anos, moradora de Lille, no Norte da França, foi atacada por seu próprio cão, um labrador, em maio deste ano. Era tarde da noite, e ela estava sonolenta, após ter tomado calmantes por causa de uma discussão com sua filha, quando pisou no cachorro. Uma das cirurgiãs, Sylvie Testelin, contou que a paciente continuou adorando o cachorro mesmo depois do ataque, que considerava um acidente. "Ele foi morto, mas logo ela arrumou um outro", disse a médica.

O transplante foi duramente criticado por médicos que acreditam que a equipe francesa infringiu princípios éticos. Como a mulher foi desfigurada há seis meses, alegou-se que não houve tempo para tentar outras técnicas de reconstrução facial menos arriscadas e nem de preparar psicologicamente a paciente. O comitê consultor de ética francês (CCNE) proíbe os transplantes de face completos,mas liberou o parcial. Segundo um documento do órgão, o risco de rejeição aguda após um procedimento deste tipo é de 10% no primeiro ano e entre 30% e 50% depois de cinco a dez anos.

MÃO AMPUTADA

"Houve muitas, muitas questões éticas. Minha filosofia é que somos médicos e tínhamos uma paciente com uma séria desfiguração da face. Era extremamente difícil, senão impossível, recuperá-la com as técnicas clássicas. Como tínhamos condições de melhorar a situação de nossa paciente, fizemos o que podíamos", defendeu-se Dubernard.

Ele disse que a paciente foi avisada de todos os riscos que corria, inclusive do fato de que seria alvo da imprensa mundial por muito tempo, por se tratar de um procedimento médico inédito.

Dubernard é conhecido internacionalmente desde 1988 quando fez uma tentativa, também muito divulgada, de transplante de mão. O fracasso - a mão teve de ser amputada três anos depois - não o impediu de empreender um transplante de duas mãos de um mesmo doador em 2000. Também o primeiro no mundo, o transplante duplo deu certo. O homem está bem e usa suas mãos. Desde então, já foram feitos mais de 30 transplantes de mãos.

O sucesso do transplante de face depende não apenas da reação do organismo aos órgãos estranhos , mas também da reação psicológica da paciente diante da nova feição que seu rosto vai adquirir daqui a alguns meses. Ele provavelmente não será igual nem ao seu antes do ataque do cão nem ao da doadora morta. E ninguém pode garantir ainda se sua capacidade de sorrir e se expressar será natural.