Título: O tempo está se esgotando
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/12/2005, Notas e Informações, p. A3

A deterioração da segurança pública, em especial no Rio de Janeiro, chegou a tal ponto que quem pensa já ter visto tudo em matéria de violência praticada por bandidos é sempre surpreendido por uma ação criminosa ainda pior, mais cruel e covarde. É o que acaba de acontecer com o ônibus cheio de passageiros incendiado por um bando de traficantes, na noite de terça-feira, no Rio.

Não é a primeira vez que nas "guerras" de traficantes, com a polícia ou entre eles mesmos, veículos têm sido queimados. Só neste ano, isto já aconteceu com 73 ônibus no Estado do Rio, mas não com pessoas dentro. Desta vez, elas foram deliberadamente impedidas de escapar. Às 22 horas, um grupo de 10 rapazes desceu o Morro do Quitungo, na zona norte, com quatro garotas. Fizeram sinal para o ônibus parar, entraram e jogaram gasolina sobre o chão, os bancos e os passageiros e atearam fogo.

O motorista, um dos poucos que conseguiram escapar, foi impedido de abrir a porta traseira para dar aos passageiros desesperados uma chance de fugir do inferno em que se transformou o veículo. "Eu gritava que havia criança no ônibus, mas os bandidos não ligaram para isso", testemunhou uma sobrevivente. Um pai já queimado, desesperado, tentou em vão salvar a família - a jovem mulher e a filha de 1 ano, mortas carbonizadas. O saldo da tragédia foi de 5 mortos, quase irreconhecíveis, e 14 feridos, muitos em estado grave.

O motivo desse ato bárbaro foi represália pela morte de um traficante, em confronto com policiais militares um pouco antes. Os traficantes convocaram os moradores para fazer um protesto num acesso do morro e, ante a recusa destes, decidiram incendiar o ônibus.

Não é a primeira vez que os traficantes do Rio se esmeram em sua selvageria, para dar demonstrações de força e intimidar tanto as forças policiais como as comunidades em que estão inseridos. Além dos toques de recolher cada vez mais freqüentes impostos aos moradores dos morros e favelas que mantêm sob estrito controle, as punições para os que, de alguma forma, lhes dificultam a atividade criminosa costumam ser barbaramente exemplares.

O problema é que agora, como mostra esse trágico episódio, não reconhecem mais quaisquer limites para seus atos cada vez mais monstruosos, deixando claro que estão dispostos a tudo para manter a população dos morros permanentemente apavorada e, assim, submissa a seus propósitos.

O segundo ato desse drama é, do ponto de vista da falência do poder público, tão grave quanto o primeiro. Não demorou muito para que quatro dos bandidos que participaram do incêndio do ônibus aparecessem mortos a tiros, dentro de um carro, no mesmo bairro. No banco da frente, um cartaz informando: "Taí os quatro que queimaram o ônibus. Nós do CVRL (uma facção da organização criminosa Comando Vermelho) não aceitamos atos de terrorismo." E sabe-se que eles estão à procura dos outros.

Ou seja, chegamos ao absurdo de também o combate ao crime, por outras facções, estar se transformando numa boa medida em assunto de bandidos. Trata-se de uma clara tentativa dos traficantes - que já dominam vastas áreas do Rio, onde só se entra com sua permissão, como é notório há muito tempo - de assumir mais funções do Estado, as de investigar, prender criminosos (rivais), julgá-los, condená-los e executá-los sumariamente.

Esses dois episódios fornecem a mais inquietante e eloqüente demonstração da tão propalada falência do Estado no que se refere à segurança pública. Uma das mais respeitadas especialistas na questão, a socióloga Julita Lemgruber, diretora do Centro de Estudos de Segurança da Universidade Cândido Mendes, está coberta de razão quando adverte que, se o Estado não reagir logo, haverá outras ações criminosas tão ou mais violentas que o incêndio do ônibus. E isto vale para todo o País, não apenas para o Rio, embora ali a situação seja particularmente grave.

Está mais do que na hora de municípios, Estados e governo federal abandonarem as promessas retóricas - sempre reiteradas nos momentos de crise aguda e logo depois esquecidas - e unirem esforços de maneira efetiva para o combate ao crime. O tempo está se esgotando rapidamente.