Título: Carrapato e febre maculosa
Autor: Arary da Cruz Tiriba
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/12/2005, Espaço Aberto, p. A2

Infecções rickettsiais são assinaladas em todos os continentes. Em muitos dos seus modelos clínico-epidemiológicos é impraticável bloquear a transmissão. A febre maculosa, representante mais importante nas Américas, é envolta por fama alarmante, sobretudo porque os primórdios das investigações estão marcados com sacrifícios de cientistas de escol.

Tifo e febre tifóide - febre entérica, como os médicos germânicos a tratavam - são doenças distintas. Foi só no século 19 que o dr. William Wood Gerhard, clínico americano, as diferenciou. A febre maculosa está mais para as infecções tíficas, até porque seu organismo causal integra o gênero Rickettsia.

Nos primeiros decênios do século passado a doença era referida por Thypho Exanthemático: de São Paulo, Minas Gerais. A alteração do nome decorreu por similitude com a coirmão Rocky Mountain Spotted Fever, circulante na América do Norte.

Febre maculosa e o tifo clássico têm em comum o manchado da pele, mas o transmissor do segundo é o piolho do corpo (Pediculus corporis), o qual elimina pelas fezes a R. prowasekii. Figuram como seus comparsas fome, guerra, inverno, promiscuidade, sujeira, cárcere, campo de concentração. Sua gravidade é ampliada pela propagação inter-humana, pelo caráter altamente epidêmico e pela letalidade devastadora.

O tifo murino, outra modalidade, tem por organismo a R. thypi, veiculada pela pulga do rato, Xenopsylla cheopis, transmissora, também, da peste bubônica. Estão mais sujeitos à infecção os trabalhadores em armazéns de cereais e em páteos ferroviários e portuários.

Na primeira metade do século passado, durante investigações das infecções aparentadas, pesquisadores da Europa e da América do Norte tiveram o concurso fundamental do cientista, marcadamente verde-amarelo, Henrique da Rocha Lima. Convidado pela Alemanha, durante a 1ª Grande Guerra (1914-18), para esclarecer sobre a epidemia, consagrou-se como o descobridor do agente causador do tifo que dizimava soldados e civis. A doença não o poupou, mas o cientista sobreviveu após prolongada convalescença. A mesma sorte não tiveram seus parceiros Stanislas Joseph Matthias von Prowazek, zoólogo alemão, e Howard Taylor Ricketts, médico norte-americano morto durante pesquisas no México. Os nomes dos microrganismos, R. prowazekii e R. rickettsii, foram propostos por Rocha Lima em homenagem aos tombados.

Em 1933, foi editado na capital paulista o livro Typho Exanthematico de São Paulo, da autoria de médicos não menos notáveis: José de Toledo Piza (Hospital de Isolamento Emílio Ribas), Luiz de Salles Gomes (Instituto Bacteriológico, atual Instituto Adolfo Lutz) e Juvenal Ricardo Meyer (Instituto Biológico). Passados 72 anos, o título mantém-se atual por descrever sucessos ora reproduzidos: o caráter endêmico, os elos da transmissão, o pico sazonal em outubro e novembro.

Em 1935, mais desfechos funestos. José Lemos Monteiro e seu assistente Edison Dias, ambos do Instituto Butantan, trituravam carrapatos infectados para produção de vacina, adquiriram a infecção e faleceram no mencionado Hospital de Isolamento.

O homem do campo, com sua tosca medicina, quando expressa "sarampo preto", aponta a febre maculosa, capaz de desencadear microepidemias intrafamiliares. As ocorrências já foram dissimuladas pelo sarampo, não menos letal entre os pobres. Após o controle do sarampo pela vacinação, a febre maculosa adquiriu maior visibilidade. Durante a longa epidemia de doença meningocócica dos anos 70 do século passado, a meningococcemia também encobriu casos.

O organismo, rickettsia, é expelido na oviposição; passa, em sucessão, à larva, ninfa e forma adulta (imago) do aracnídeo reservatório; e, daí, aos cães, roedores (capivaras), animais de pasto, os quais apresentam sintomas mínimos. Rickettsias são lançadas para fora pela saliva do Amblyomma cajennense, carrapato-estrela, carrapato do cavalo, o eficiente vetor da transmissão para o homem. Carrapatos "pegam carona" nos animais de estimação que freqüentam o pasto e têm acesso à habitação, criando riscos adicionais. De outra parte, vivência em chácaras, arvorismo, pescarias à beira de represas, dormidas em pousadas podem contribuir para a aquisição da infecção, se não houver observância das recomendações preventivas.

Início súbito, febre elevada, cefaléia e dores musculares, confusão mental, inchação da face, sinais de irritação meníngea, secura de lábios e língua e aparecimento de manchas, assemelhando-se às da casca do ovo de codorna, caracterizam a doença.

O tratamento deve ser instituído nos primeiros 3-4 dias, diante do quadro clínico e da exposição em áreas focais nos 10-14 dias precedentes. Algumas vezes o carrapato e/ou a escara da picada podem ser encontrados, encobertos sob o couro cabeludo no limite com o pescoço.

A associação ixodídeo-febre maculosa responde pelos surtos limitados e restritos. Ao contrário do tifo clássico, primavera, verão, troca de roupas - leves e claras -, banhos diários, repelentes estão a nosso favor. Mas - advertência! - está composta a ante-sala para doenças outras, menos estudadas, de quadros clínicos diversificados e de comprovação laboratorial menos acessível: doença de Lyme, babesiose, erlichiose, febre Q, febre recorrente e encefalite por vírus; algumas, elegendo indivíduos sob imunodepressão; em todas, o artrópode marcando presença.

Aviso aos jovens inclinados para a área de biociências: não faltará trabalho atraente - no laboratório e no ambiente natural -, secundando os exemplos dos cientistas citados, mas assegurada - pela nova geração - a preservação da vida pelos imunoprofiláticos que todos almejamos.