Título: O futuro do PT
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/12/2005, Espaço Aberto, p. A2

A vantagem do PT sobre os demais partidos da República é que o PT entusiasmava, e a política tem de entusiasmar. Parecia ter rumo fixo, objetivo certo, aquela postura ética impecável. Bastou tomar o poder para que tudo mudasse. O rumo? Perdeu-se nos torvelinhos de transações duvidosas e mal explicadas. O objetivo (a reforma do País)? Foi traído e esquecido. A postura ética? Revelou-se uma bela impostura. Ainda não se sabe bem o que aconteceu. Se não quisermos complicar as coisas, a resposta fica mais fácil. Ocorre que o Partido dos Trabalhadores não estava preparado para o exercício do mando soberano. Não contava com quadros suficientes, portanto, carecia de um projeto consistente e bem arquitetado de governo, ignorando por onde começar. O tiro de partida, o Fome Zero, já dizia tudo: Lula pautaria sua ação não por um projeto global e integrado, mas por uma sucessão de oportunismos táticos e pontuais. Mas o fato é que os petistas estavam eleitos. Na falta de saber o que fazer com a soberania do País nas mãos, seguiram a lei da inércia: vamo-nos agarrar com unhas e dentes às posições conquistadas e conservar o mando pelo maior tempo possível, custe o que custar. Foi o pacto com o demônio.

Claro que o ministro da Casa Civil foi quem tomou a peito a responsabilidade de costurar o pacto com o diabo, dirigindo a rede de coligações destinada a garantir a permanência do presidente no Planalto por tempo indefinido. José Dirceu merece uma estátua do seu partido. Foi ele que assumiu a iniciativa de preencher o vácuo de poder conseqüente à inapetência de Lula para enfrentar o dia-a-dia do governo, com sua pauta de urgências e decisões a tomar. Lula delegou a Dirceu a missão de dar forma e figura a um governo originariamente desarticulado. Ereto e bem plantado em sua coluna vertebral, Dirceu quis ser (com pouco sucesso) a espinha dorsal desse governo invertebrado. Seu perfil é o de um homem de comando da cabeça aos pés. Sabe mandar e desmandar, sem nunca perder certo senso de humor. Procura pôr em prática o preceito famoso do Che Guevara: "Endurecer, pero sin perder la ternura jamás." O peso das suspeitas sobre Zé Dirceu está na razão direta do seu excesso de poder.

O PT tem futuro? Muitos pensam que não, certos de que o partido foi destruído de vez pelo mau comportamento dos próprios petistas. Só que as coisas não são tão simples assim. Subsiste na intimidade do PT, desmoralizado, dividido, deteriorado, um sólido ideal de permanência que não se deixa dissolver. O PT tem futuro, e é bom para a democracia que exista um partido como o PT, servindo de dique contra os ímpetos anarquizantes da esquerda desorganizada investindo contra os poderes constituídos. Ao PT cabe o papel de representar a esquerda organizada, madura, livre das doenças infantis do esquerdismo: o centralismo autoritário, o nacionalismo obsoleto, a intolerância maniqueísta, o messianismo e os últimos pruridos revolucionários. O mapa político do Brasil não seria completo sem a presença ativa de um partido de esquerda moderno que instrumentasse as pretensões do socialismo, como ocorre no mundo inteiro.

No entanto, para sobreviver como agremiação socialista adulta e moderna, impõe-se uma condição ao PT que não será fácil de aceitar: livrar-se para sempre de Lula. O PT e Lula estão historicamente unidos na mesma carreira que culminou na vitória eleitoral de 2002, alimentando-se um ao outro. Subiram juntos e agora se precipitam juntos na vertigem da crise política que os ameaça de desintegração total. A única maneira de salvar-se o PT é alijar Luiz Inácio da Silva. Este representa um peso morto que puxa o partido para baixo, impedindo seu vôo de renovação. Lula não é e nunca será um estadista, não passando de um sindicalista muito esperto e talentoso, que faz da duplicidade sua lógica de governo (conforme já acentuou muito bem Dora Kramer). A duplicidade quebra a confiabilidade e a quebra da confiabilidade compromete, essencialmente, a autoridade do governante.

Enquanto o PT estiver unido ou identificado com Lula, jamais perderá sua feição arcaica de partido "messiânico", imbuído da missão profética de purgar o País de seus vícios e deformações, e inaugurar os novos tempos paradisíacos iluminados pela tão desejada e esperada justiça social, sem vestígio de exploração do homem pelo homem. O partido, para sobreviver, precisa perder essa aura messiânica emprestada por um líder pretensamente carismático. O propalado "carisma" de Lula submete o partido a um estilo de liderança irracional, sem base na coerência e transparência das idéias, ancorado na crença do homem providencial e sua sabedoria infusa, dirigida pela "intuição" miraculosa e infalível. O carisma, esse dom extraordinário na condução dos homens, é algo que existe, sem dúvida, na História, que está cheia de personalidades excepcionais, para o bem e para o mal. Mas o verdadeiro carisma não pode ser confundido com mistificação.

A crença em Lula como personalidade carismática e fonte de certeza e decisões privilegiadas é a mistificação que acompanha o PT desde as origens, mas que está na hora de repelir, se o PT quiser sobreviver em competição com os demais partidos num plano racional onde as idéias prevaleçam sobre as crendices e superstições emanadas de um solo terceiro-mundista que já é objeto de ironia de todo o mundo civilizado.

O PT precisa de uma liderança da qual não se esperem milagres, mas que assuma sua tarefa guiada não mais pela ética da convicção, ou das últimas finalidades, cujo lema poderia ser "fiat justitia pereat mundus" (faça-se justiça e que acabe o mundo), e sim de uma liderança inspirada na ética da responsabilidade, que poderia resumir-se nas palavras de Hegel "fiat justitia ne pereat mundus", ou seja, faça-se justiça para que o mundo não acabe.

A sobrevivência do PT não está na fidelidade ao passado (com Lula), mas na "fidelidade ao futuro" (sem Lula).