Título: EUA enfrentam revolta alemã
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/12/2005, Internacional, p. A6

A reunião tinha tudo para ser uma reconciliação. A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, já havia falado que o episódio da guerra ao Iraque era rivalidade passada entre alemães e americanos. Mas o fato de a CIA estar usando bases européias para transportar presos suspeitos de terrorismo, esmiuçado pela imprensa alemã, tornou a azedar o clima. Ontem, a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, fez um discurso defendendo a política americana. Hoje, terá que dar explicações a Angela, no início de uma visita à Europa com muita turbulência à vista.

- Se os EUA não nos derem detalhes, exigiremos que os governos europeus compareçam diante do Parlamento - avisou Martin Schulz, chefe do Grupo Socialista do Parlamento Europeu, deixando claro que não vai permitir que meias-palavras alimentem ''especulação''. - Há uma aceitação ativa e há aquiescência. Ambas são inaceitáveis - completou. A opinião pública está particularmente irritada pela descoberta de que seu país tinha um papel central na operação de transferência clandestina dos presos.

Na Base Aérea de Andrews, em Maryland, antes de embarcar, Condoleezza fez uma defesa enfática da política antiterror da Casa Branca, mas não confirmou nem negou a existência de prisões secretas da CIA no Leste Europeu, como denunciaram o jornal Washington Post e outros veículos. A secretária deixou transparecer uma certa irritação com a 'ingratidão' dos europeus.

- Deveriam confiar nos EUA porque as informações coletadas pela CIA evitaram muitos ataques na Europa, e em outros países - provocou.

Condoleezza também defendeu o uso que a CIA faz da transferência de suspeitos de terrorismo para países onde podem ser interrogados fora da jurisdição americana.

- A transferência é praticada há décadas, não só pelos EUA. Tampouco apenas pelo governo atual - garantiu a secretária, acrescentando que as Inteligências de outros países trabalham com Washington para extrair informações dos detidos. O programa começou com o presidente Bill Clinton após os atentados contra as embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia.

No entanto, Condoleezza negou que a tortura seja permitida, sob qualquer circunstância:

- Os EUA não usam o espaço aéreo ou o aeroporto de qualquer nação com o propósito de transportar um prisioneiro que acreditamos que vá ser torturado. Não aceitamos isso.

Mas segundo o Post e a revista alemã Der Spiegel, a tortura não seria a única contravenção feita pelos EUA na Europa - e este será o assunto espinhoso entre Angela e Condoleezza. A CIA fez um número enorme de transferências via Alemanha, onde os aviões da CIA passaram 437 vezes. Em pelo menos 35 casos, os suspeitos, muitas vezes, seqüestrados na rua, eram inocentes.

Um deles é o cidadão germânico Khaled Masri, homônimo de um alto líder da Al Qaeda. A CIA o seqüestrou na Macedônia, em dezembro de 2003, enquanto o chefe do escritório local da agência estava de férias. O ''suspeito'' foi levado para o Afeganistão, onde passou cinco meses em condições aterradoras. Depois de perceber que tinham cometido um erro crasso, o governo dos EUA ainda debateu se devia avisar ''aos alemães''. A idéia era despachar o embaixador dos EUA na Alemanha, Daniel Coats, para notificar Berlim.

- Eles pegaram a pessoa errada. Masri não tinha informação. Em muitos casos, há só uma vaga associação com o terrorismo - confirmou um oficial da CIA ao Post, classificando o setor que cuidava dessas operações como a ''Camelot do contraterrorismo'', onde não era preciso ''dar satisfações a ninguém''.

O Post fala ainda que a CIA operava uma rede secreta de prisões secretas em oito países europeus no Leste. Desde 11 de setembro, 3 mil pessoas teriam sido levadas para estas detenções, entre elas líderes da Al Qaeda. Aqueles que embarcavam nos ''vôos clandestinos'' eram vendados, tinham as roupas cortadas e eram forçados a ingerir remédios para dormir. Geralmente, eram transferidos para outras prisões da CIA em países aliados: o Afeganistão ou nações da Ásia Central e Oriente Médio.

Também a Anistia Internacional denunciou ontem que os americanos sobrevoaram mais de 800 vezes o espaço aéreo europeu para transportar suspeitos de terrorismo.

- Ao não confirmar nem negar as prisões e torturas, os EUA zombam das leis internacionais. Se recusam a reconhecer sua responsabilidade - criticou a secretária-geral da AI, Irene Khan.

No entanto, Condoleezza não é a única de quem espera-se explicações urgentes.

- Se qualquer membro da União Européia ou candidato contribuiu ativamente, ou foi conivente, com tortura, transportes clandestinos e prisões ilegais dentro de seu território, será investigado. E sofrerá as conseqüências - alertou Schulz.

Enquanto isso, a Alemanha - que comanda o contingente da Otan no Afeganistão - investiga as denúncias da prisão equivocada de Masri. O atual governo quer saber se Otto Schily, ex-ministro do Interior, recebeu informações do embaixador Coats em maio de 2004.

- Estamos procurando as informações no Ministério do Interior - confirma um porta-voz.