Título: Três lacunas na biografia do homem obsessivo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/12/2005, Nacional, p. A8

Dirceu nunca teve vínculos com os grupos clássicos e nunca fez uma ação armada

"Se¿or Tavares, Oliveira e Silva no vino". A frase, dita pelo oficial da polícia mexicana Bustos, eletrizou o jornalista Flávio Tavares na manhã do dia 9 de setembro de 1969, pouco antes do café, no Hotel del Bosque, à avenida Melchor Ocampo, 323, Cidade do México. "Oliveira e Silva", era o líder estudantil José Dirceu e Bustos, o oficial da polícia mexicana que comandava a vigilância sobre os 15 presos políticos brasileiros desembarcados 2 dias antes, depois de trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick. Mal chegados, os 15 estavam no epicentro de uma parafernália de espionagem. A Pensión Hogar, em frente ao hotel, estava apinhada de exilados anticastristas; no hotel, agentes da ditadura brasileira esbarravam em homens da CIA, que tropeçavam em espiões de Fidel Castro, todos observados pela polícia mexicana, que protegia e, ao mesmo tempo, vigiava os 15. Os primeiros dias eram povoados de fantasmas de um seqüestro ou assassinato político.

Depois de 50 minutos tensos, Dirceu chegou, cabelos compridos úmidos e barbas à maio de 68. Ao final da descompostura que Flávio lhe passou por ter quebrado as normas de segurança e passado a noite, como explicaria depois, com Nídia - uma bonita jornalista mexicana que cobrira o desembarque dos exilados -, disse suavemente: "Flávio, eu hoje reencontrei a vida".

DETERMINAÇÃO

Nem sempre foi assim. O militante Ricardo Zarattini, hoje suplente de deputado do PT, conta que ainda líder estudantil, uma bela agente da repressão tentou seduzi-lo, sem êxito. "Naquela época, todos éramos determinados; ele foi o único que continuou com a mesma determinação até hoje", admite Chizuo Osava, que militou na VPR ao lado de Carlos Lamarca.

A determinação não foi suficiente para cobrir certas lacunas em sua agitada biografia. A maior delas foi o Molipo (Movimento de Libertação Popular), que ele e mais 27 militantes fundaram em Cuba e que foi dizimado pela repressão antes de começar a lutar. Outra lacuna é que, depois de cumprir dois períodos de treinamento de guerrilha em Cuba, voltou ao Brasil, em 1975, para se entregar a uma vida pequeno-burguesa no norooeste do Paraná.

Qual o sentido disso? Osava explica: a partir de 1973, quem treinava guerrilha em Cuba percebeu que as organizações estavam completamente infiltradas e mapeadas pela repressão. "Concluímos que, na volta, deveríamos viver num lugar ermo, com nova identidade, até ter condições de recomeçar a luta, num futuro que ninguém podia enxergar", conta hoje Osava. A determinação tem limites. Seu amigo Bob Marques diz que o viu chorar convulsivamente duas vezes na vida - na morte do pai e de uma secretária.

A terceira lacuna é que sempre defendeu a luta armada, mas nunca participou de uma ação do gênero. Aliás, só teve partido definido enquanto esteve no PCB, no começo da militância, e depois da fundação do PT. Entre os dois, viveu num limbo ideológico. Como líder estudantil, mobilizou multidões e foi preso no conturbado congresso que deveria elegê-lo presidente da UNE, em Ibiúna, em outubro de 1968, ligado apenas à "dissidência universitária" do PCB, sob a liderança de Carlos Marighella. Adiante, tod os se vincularam, menos ele.

Os amigos têm uma explicação tardia, mas razoável: em seu arcabouço ideológico, ele nunca teve a luta armada como um fim, mas apenas como uma etapa da mobilização das massas. Mas não explicam que etapa transcorreu enquanto ele viveu escondido em Cruzeiro do Oeste (PR), sob nome falso.

Não e star vinculado a um grupo guerrilheiro facilitou-lhe o trânsito em todos e ajudaria, dez anos depois, a pontificar sobre a esquerda do PT; antes, não estar vinculado a grupos conhecidos rendeu-lhe uma prisão relativamente tranqüila e sem torturas. No México, retribuiria a gentileza: num texto escrito pelos banidos para denunciar a ditadura, ele e Vladimir Palmeira pediram para podar a frase "no Brasil, a tortura se institucionalizou como método".

Depois de um mês, Dirceu deixou Nídia e o México. Foi para Cuba treinar guerrilha e, depois de breve passagem pela escola Punto Zero, acantonou-se, com mais uma dezena e meia de empolgados candidatos a guerrilheiro, no acampamento "Primavera" (a outra metade foi alojada no "Outono"). Muito tempo depois, em Paris, o comandante Dariel Ramírez Alarcón, o famoso chefe guerrilheiro Benigno, ex-comandante da Punto Zero, já rompido com Fidel Castro, disse que Dirceu foi o mais dedicado e compenetrado aluno da escola. "Chegava a ser um lambe huevos", elogiou Benigno.