Título: Meirelles, o câmbio e a política do BC
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/12/2005, Espaço Aberto, p. A2

No último sábado este jornal publicou reportagem segundo a qual o presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, disse que o forte aumento das exportações é o principal responsável pela valorização do real (queda da taxa de câmbio em reais por dólar) em 2005, e não a taxa de juros. Textualmente: "(...) o que é importante notar é que, dentro do fluxo do câmbio no Brasil, temos diversos componentes e o mais importante hoje é (...) o saldo comercial (...). Em segundo lugar temos o investimento direto estrangeiro e só num distante terceiro, o investimento financeiro." Como este último é o mais estimulado pelos altos juros brasileiros, ele não seria o principal determinante da valorização do real.

Essa afirmação poderia ser qualificada nos seus detalhes. Entre eles, o de que seria melhor levar em conta o balanço de transações correntes (que incorpora também as transações relativas a serviços), e não apenas o saldo comercial (que trata apenas do fluxo de mercadorias), e ponderar também os recursos absorvidos pela rolagem da dívida, bem como os efeitos indiretos e negativos dos juros sobre as importações, na medida em que eles inibem a atividade econômica.

No geral, entretanto, o presidente do BC está correto. De fato, o crescimento das exportações foi o principal condicionante da forte e contínua melhoria das contas externas brasileiras nos últimos anos, levando a um quadro em que a taxa de câmbio passou a sofrer pressão baixista. Isso tanto por efeitos concretos como pelo papel que esse crescimento teve na formação das expectativas dos agentes que atuam no mercado de câmbio.

O que disse Meirelles é ainda mais interessante nas suas implicações quanto à ação da política de metas de inflação que o BC formula e executa mediante administração da taxa básica de juros. Admitindo que estes desempenharam papel secundário na valorização cambial, e sabendo que esta teve papel fundamental na redução da inflação (ao diminuir o preço em reais dos bens e serviços importados, bem como dos nacionais que se regem por preços internacionais), o BC deveria ter a humildade de reconhecer que sua política não tem o forte poder antiinflacionário que apregoa. Em particular, deveria compartilhar com os exportadores brasileiros os resultados que vem alcançando no front inflacionário. E, ainda, manifestar-lhes gratidão pela sua "contribuição", inclusive porque carecem de um afago, tamanho o custo com que vêm suportando esse papel.

O efeito do câmbio sobre a inflação fica claro quando se examina a diferença entre a variação do IPCA, um índice de preços ao consumidor, do IBGE (o índice com que se aferem as metas de inflação), e a do IGP-DI, da Fundação Getúlio Vargas, no qual têm grande participação os preços no atacado, os mais afetados pela taxa de câmbio. Segundo o Relatório de Mercado divulgado esta semana pelo BC, a previsão é que o primeiro índice terminará 2005 com taxa anual próxima de 5,5%, enquanto o segundo deverá ficar em torno de apenas 1,5%(!). Isso não significa que a taxa de câmbio não afete o IPCA, pois os preços no atacado também repercutem na esfera do varejo, ainda que em menor proporção. Entre outros efeitos do câmbio nessa esfera, há também o das tarifas de eletricidade e telecomunicações, que são reajustadas por uma das variantes do IGP, e tanto assim é que se prevê um efeito favorável dos próximos reajustes, bem menores, sobre o IPCA de 2006.

Nessas condições, a taxa de câmbio tem também efeito sobre o IPCA e a redução dela este ano (de R$ 3,1 por dólar para perto de R$ 2,2, atualmente) foi fundamental para diminuir a inflação medida por esse índice, que foi de 7,6% no ano passado.

Quão importante é o efeito do câmbio em relação ao da taxa de juros? Na minha intuição, é mais importante, e o efeito dos juros ocorre mais por meio do nível de atividade econômica, inibindo-o e, indiretamente, a inflação. Contudo, a contribuição efetiva de cada um ainda permanece por esclarecer via estudos econométricos.

Se estes avançarem, perceberão também quão questionável é a política de metas de inflação adotada pelo BC. Um dos últimos estudos, voltado para a análise dessa política em países emergentes, inclusive o nosso, mostra que a estrutura econômica brasileira é uma das menos adequadas à adoção de uma política desse tipo(*). Em particular, atuam contra essa política a sensibilidade de nosso sistema de preços à propagação de mudanças da taxa cambial e de preços de commodities. Conforme ficou claro este ano, a inflação brasileira é bastante sensível a esses dois aspectos, que trouxeram menor inflação, mas levam o BC a superestimar arrogantemente o efeito da política de metas. Se ambos os aspectos atuassem na direção contrária, a ineficácia dela ficaria mais clara, pois a inflação seria agravada e "necessários" juros ainda mais elevados para contê-la.

Além desses aspectos, a política de metas vem sendo incoerentemente acompanhada de uma expansão do crédito (em particular o consignado), que também atua na direção contrária. Isso ao lado da indexação de parte da dívida pública à taxa de juros, o que agrava brutalmente o custo dessa dívida, ampliando também a renda dos investidores que têm os papéis dessa dívida, novamente em sentido contrário ao da política.

Os economistas concordam que o maior desafio da economia brasileira é o de enfrentar suas altas, endêmicas e contagiosas taxas de juros. Esse desafio deve necessariamente passar pelo reexame da política de metas, que trata o drama da inflação como um monólogo no qual o BC fala consigo mesmo ou só transmite ao público o que lhe interessa.