Título: Mercados são o foco da negociação
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/12/2005, Economia & Negócios, p. B7

Lista européia pode incluir tudo o que interessa ao País, mas parceiros do G-20 dão trabalho à diplomacia

O agronegócio brasileiro elegeu duas prioridades para a 6ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC): avançar nas negociações de acesso a mercados do mundo rico e reduzir os subsídios internos aos produtores do Primeiro Mundo. Seu terceiro grande objetivo, a extinção dos subsídios a exportações, está mais próximo. Já houve um compromisso básico sobre o assunto e falta acertar o prazo. Os governos brasileiro e americano propõem 5 anos, mas a diplomacia da União Européia (UE) ainda não fechou nenhum compromisso. Um acordo sobre esse ponto pode ocorrer nesta reunião, avaliou ontem o chanceler brasileiro Celso Amorim. "Mas não vou pagar por isso", acrescentou, indicando que não seria o caso de dar uma contrapartida pela solução desse problema.

As discussões sobre o agronegócio vão determinar se o encontro de Hong Kong, marcado para começar amanhã, produzirá um avanço na Rodada Doha, mesmo pequeno, ou se será um completo fracasso. Devem participar do encontro 149 países.

Será preferível sair de Hong Kong sem resultado nenhum a ter um mau resultado, disse o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. Essa frase tem sido pronunciada por vários negociadores nos últimos meses.

Nenhum problema central da Rodada Doha deve ser resolvido nesta conferência, segundo Amorim, mas poderá haver, em alguns temas, progresso bastante para manter o processo em movimento.

Entre os motivos de seu relativo otimismo o chanceler mencionou a interesse do governo americano em cortar as subvenções. Segundo Amorim, "os Estados Unidos estão hoje verdadeiramente interessados em diminuir os gastos com subsídios agrícolas". Pela primeira vez indicaram, acrescentou o ministro, "a disposição de reformar a política agrícola de modo que constranja sua capacidade de dar subsídios distorcivos".

Os delegados brasileiros, embora demonstrando ceticismo, trouxeram para a conferência uma pauta detalhada. Essencialmente, o ministro da Agricultura se dispõe a defender as propostas da Câmara Temática de Negociações Agrícolas, com participação do setor privado e do governo.

A ampliação real do acesso a mercados vai depender da negociação dos chamados produtos sensíveis - como açúcar, lácteos e carnes, no caso da União Européia - que serão selecionados para receber proteção especial. Se os europeus incluírem nessa categoria 1% dos produtos de sua pauta, com tratamento segundo seus critérios, três quartos dos ganhos possíveis de comércio serão perdidos, estima o Banco Mundial.

CRITÉRIOS

O governo brasileiro poderá até aceitar a inclusão de maior número de produtos nessa categoria, se forem observadas certas condições. Os europeus propõem ampliar as cotas tarifárias a partir dos níveis em vigor. Os brasileiros defenderão outro critério. A grandeza de referência deverá ser o mercado, não as cotas atuais. As novas cotas deverão representar pelo menos 5% do consumo interno. Atualmente representam muito menos. Pelo critério brasileiro, haverá muito mais espaço para a ampliação de vendas de carnes e açúcar sem pagamento de tarifas adicionais.

O governo brasileiro defenderá o limite de 1% das linhas tarifárias, mas não está afastada a hipótese de um limite mais amplo, se as condições para fixação das cotas forem mais severas. O mais importante é conseguir um aumento efetivo de acesso aos mercados. A idéia de alguma flexibilidade em relação ao número de produtos tem sido considerada no Ministério da Agricultura.

No caso do açúcar, um dos produtos com maior proteção em todo o mundo, os europeus são pressionados por uma coligação de grandes e eficientes exportadores, incluído o Brasil. "Por tempo excessivo o açúcar tem sido posto de lado como um assim chamado produto sensível nas negociações internacionais", disse ontem o presidente da Aliança Global do Açúcar, o australiano Keith De Lacy.

"Isso não é mais aceitável", acrescentou, informando que os participantes da frente produzem metade de todo o açúcar do mundo e fornecem mais de 85% das exportações do produto sem refino. De Lacy defendeu como objetivos da conferência a redução de tarifas de importação e um aumento de cotas de produtos sensíveis para 20%, no mínimo, do consumo dos países desenvolvidos.

"O tratamento dos produtos sensíveis definirá o nível de ambição das negociações nesse pilar (o do acesso a mercados)", segundo o documento da Câmara Temática distribuído ontem, pelo ministro Roberto Rodrigues, depois de encontro com representantes do Grupo de Cairns, frente de países exportadores agrícolas formada na Rodada Uruguai (1994).

Sem atenção a detalhes desse tipo, comentam especialistas brasileiros, as concessões comerciais não passarão de palavras e os cortes de barreiras serão cortes na água. O mesmo cuidado vale para a questão dos subsídios internos.

PARCEIROS

O G-20, criado em 2003 por inspiração do Brasil, para defender a reforma do comércio agrícola, propõe corte geral de todos os subsídios causadores de distorções de preços. Esse corte deve ser de 80% para a União Européia e de 75% para os Estados Unidos, com fixação de um teto definido por produto.

O Ministério da Agricultura deve encampar também uma proposta ambiciosa de limitação de subsídios formulada pela Câmara Temática. A restrição deverá valer quando a participação de um país no mercado internacional de um produto superar 2%. Se o subsídio concedido a esse produto for maior do que 10% do valor da produção, outros países terão o direito, automaticamente, de formular uma acusação de dano. Caberá ao acusado, nesse caso, provar que o dano não ocorreu, invertendo-se a obrigação da prova.

Mas o protecionismo não é exclusivo dos países mais poderosos. Enquanto estes procuram defender seus produtos sensíveis, países em desenvolvimento procuram criar as categorias de produtos "especiais" e salvaguardas "especiais", com os argumentos da segurança alimentar, do desenvolvimento rural e da proteção aos pequenos agricultores. O governo indiano é um dos interessados nessa inovação, enquanto defende, como participante do G-20, a reforma da política agrícola do mundo rico.

É preciso, segundo o documento da Câmara Temática, definir "critérios e indicadores objetivos" para que não haja abuso na seleção dos produtos e no uso dos instrumentos de proteção. "Como regra, tais instrumentos não devem resultar em limites de proteção superiores aos compromissos vigentes."

Também com os parceiros do G-20, portanto, o governo brasileiro tem trabalho para acomodar interesses cruciais quando se trata de concorrência. O G-20, como o Mercosul, funciona muito melhor na reivindicação do que na concessão comercial, parte inevitável de qualquer negociação.