Título: Amazônia se recupera da longa estiagem
Autor: Liège Albuquerque
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/12/2005, Vida&, p. A18

Após três meses de seca, comunidades como a de Lago Rei, a 120 km de Manaus, comemoram as chuvas que começam a cair

É de manhã e chove forte na comunidade Lago Rei, mas as ribeirinhas que lavam roupa às margens do lago comemoram cada gota de chuva. É um sinal de que a seca dos últimos meses, uma das piores que já se viu nessa região localizada a 120 quilômetros de Manaus, está indo embora e as coisas vão melhorar. "Passamos três meses sem lavar roupa na frente de casa porque até três semanas atrás dava para atravessar o lago a pé. Agora a água já subiu uns 2 metros por causa da chuva", diz uma das lavadeiras, a dona de casa Alice da Silva Mourão, de 57 anos. A alegria é a mesma entre outras 60 famílias que vivem há 30 anos nessa comunidade de Manacapuru. "Nunca vi o lago tão seco, nem vivi um período tão difícil, mas agora Deus está trazendo a chuva", continua Alice, enquanto as netas Andreza, Andréia e Anelane brincam no lago que as chuvas ressuscitaram.

As primeiras águas, de novembro e dezembro, já mudaram a paisagem do lugar e quase nem se percebe agora o mau cheiro dos peixes mortos que entre agosto e outubro se amontoavam junto às margens.

A preocupação com as crianças desapareceu - por semanas a fio elas sofreram de enjôo e diarréia, mesmo com a água clorada. "Devia ser por causa do mau cheiro e de brincarem na lama", imagina outra dona de casa, Edilane Rios Vasconcelos, de 23 anos, que levava numa canoa seu filho Arleson, de 3 anos, e quatro peixes para o almoço da família, de cinco pessoas.

A seca mudou as rotinas. As netas de Alice, por exemplo, faltaram muitos dias da escola. "Era muito chão para andar, uns 30 minutos a pé, para depois pegar um barco no Rio Amazonas para chegar à escola, mais quase uma hora e meia. E tinha a fome, que dava preguiça", conta Andreza, de 16 anos, a mais velha das três.

DOENÇAS

"Agora vão aparecer doenças graves, como a hepatite", alerta Franz Marinho de Alcântara, chefe do grupo de emergência do Estado do Amazonas.

A equipe de emergência usará barcos militares para entregar 150 mil cestas básicas durante as próximas semanas para as comunidades que vivem isoladas nesse labirinto de rios.

As entregas de cestas inicialmente planejadas tiveram de ser dobradas porque, apesar da volta das chuvas, serão necessárias semanas para que os rios voltem ao nível normal após três meses de seca.

SEGURO

Para essas famílias de Lago Rei, o que resta agora é esperar pelo seguro-defeso - uma ajuda equivalente a um salário mínimo que é dada durante quatro meses aos pescadores, já que eles não podem pescar alguns dos peixes que estão em fase de reprodução. Durante a seca, o Estado ajudou, mas de modo insuficiente, com uma cesta básica, mantida por três meses, para cada família. "Mas houve dias em que nem peixe de longe, no Rio Amazonas, tinha na mesa. Era um pouco de arroz, com umas verdurinhas do quintal", recorda Alice. "Agora a gente sai da seca e os homens tomam o peixe que a gente pesca. Vamos depender do seguro-defeso".

Não muito longe das lavadeiras, Dejair Ferreira da Costa, de 9 anos, e seus amigos Leonardo da Cunha Ferreira, de 10, e Lucas da Silva, de 8, pescavam no meio do lago com tarrafas. "Está difícil. Só vem peixe magrelinho", disse Dejair. No anzol, conseguiram pescar, em duas horas, quatro pacus, dois bodós e dois cuiús. "Só dava bodó na seca, porque ele gosta de viver na lama", queixa-se o menino.

Perto deles, o pescador João Bosco Colares Areia, de 39 anos, e sua filha Jocilene, de 13, tiravam as escamas dos seis peixes que vão alimentar as oito pessoas da família. "O pessoal do Ibama ainda não veio por aqui, mas daqui a pouco a gente não vai poder pescar em frente de casa", reclama João. "Nós só vamos conseguir comer peixe comprado em feira, quando tiver dinheiro do seguro-defeso".

Para ele, seria bom se os pescadores tivessem uma cota limite para pescar, pois "a vida fica difícil mesmo com o seguro". O líder da comunidade Lago do Rei, Cristóvão de Souza Ferreira, de 42 anos, não acha justo que no período do defeso, entre novembro e março, os turistas continuem pescando piranhas e levando-as como souvenir enquanto os ribeirinhos são proibidos de pescar.

O Estado cruzou, no lago, com dois barcos com turistas estrangeiros, pescando piranhas. Eles se recusaram a dar entrevista. "Do caboclo, tiram o peixe que vai para a mesa. Quando é turista, deixam levar para enfeitar a parede", lamenta Cristóvão.