Título: O desafio de Hong Kong
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Fonte: O Estado de São Paulo, 13/12/2005, Notas e Informações, p. A3

Delegados de 149 países começam nesta terça-feira em Hong Kong a maior conferência comercial da história. Seu objetivo imediato, no entanto, é bastante modesto. Os principais negociadores poderão falar em êxito se conseguirem manter ligado o motor da Rodada Doha, com algum avanço nas discussões sobre agricultura. Afinal, o motor das negociações é a reforma do comércio agrícola, objetivo central de um empreendimento lançado há quatro anos na capital do Catar. Esta deveria ser, segundo se prometeu na ocasião, a Rodada do Desenvolvimento. Paradoxalmente, a primeira grande negociação comercial do século 21 deveria ter como tema central não a economia da informação e do mundo eletrônico, mas a agricultura, ou, mais precisamente, o agronegócio. Desde o lançamento do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), logo depois da 2ª Guerra Mundial, os acordos comerciais foram destinados principalmente à liberalização de mercados para a indústria. As atividades do campo ficaram em segundo plano, contempladas, no máximo, com acordos setoriais de produtos, como café e cacau. Esses acordos nunca foram liberalizantes e, a longo prazo, distorceram os mercados.

A grande novidade da Rodada Doha deveria ser a inclusão do agronegócio no sistema geral de normas comerciais. Deveria resultar na eliminação de barreiras e subsídios, amplamente usados no mundo rico, e na abertura de mercados, principalmente do Primeiro Mundo, à competição internacional. Nenhum desses objetivos está garantido até agora. Houve um acordo de princípio sobre a eliminação completa de subsídios à exportação de produtos agrícolas, mas o prazo não foi fixado. A definição desse ponto pode ser um dos avanços em Hong Kong. Também houve propostas de redução de tarifas e de subsídios internos, mas há muito o que discutir sobre o tema.

Os negociadores do Brasil e de seus parceiros do Grupo dos 20, frente formada por economias emergentes, cobram dos norte-americanos e dos europeus ofertas mais audaciosas de acesso a mercados e de redução de subsídios. Parte da reforma proposta pelos governos do mundo industrializado não corta nada, segundo especialistas brasileiros e do G-20. Na prática, políticas geradoras de distorções serão mantidas, argumentam os críticos.

Parte importante do problema é a pretensão, apresentada pelos governos do mundo rico, de continuar protegendo os produtores de uma série de itens "sensíveis", como carnes, trigo e açúcar. Se os europeus conseguirem manter uma severa proteção de apenas 1% de seus produtos, as commodities de maior interesse para o Brasil poderão ficar sujeitas a barreiras muito altas. Por isso, a definição do número e do tratamento dos produtos "sensíveis" poderá ser crucial para a efetiva abertura de mercados.

Mas nem os governos do mundo em desenvolvimento são tão unidos quanto podem parecer quando se trata de liberalização. Alguns países do G-20, como o Brasil, podem batalhar abertamente por uma ampliação geral do acesso a mercados de produtos agrícolas. Podem cobrar e oferecer abertura. Mas alguns membros do grupo, como a Índia, pretendem manter sob proteção uma série de produtos, definidos não como "sensíveis" mas como "especiais". Na prática, a diferença é retórica.

Da mesma forma, Brasil e outros países em desenvolvimento cobram tratamento especial quando se trata da abertura de mercados para produtos industriais. É uma pretensão razoável, em princípio. Mas é preciso evitar a tentação de proteger a mera ineficiência. Esse é um dos problemas do Mercosul, uma união aduaneira com tarifas externas comuns. Essa é uma das dificuldades para a oferta de concessões comerciais tanto nas negociações da Rodada Doha quanto nas discussões do Mercosul com a União Européia.

Neste momento, o agronegócio é o ponto central das negociações da Rodada Doha. Se não houver progresso nessa área, nenhuma outra discussão avançará. Mas, quando for preciso dar um passo adiante, o Brasil e seus parceiros de bloco terão de estar prontos para enfrentar com realismo as discussões sobre acesso a mercados para produtos industriais e serviços. Agricultura pode ser o assunto crucial da Rodada Doha, mas a pauta das negociações é ampla e complexa.