Título: Desatinos verbais
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/12/2005, Notas e Informações, p. A3

De tanto que ele se faz ouvir - usando e abusando do palanque exclusivo que lhe confere a sua condição de chefe do Estado brasileiro -, o presidente Lula vai erodindo a sensibilidade da audiência para os seus desatinos verbais e para o que já se chamou, com absoluta propriedade, a quase-lógica dos seus argumentos. Por isso, quem sabe, raros comentários nos jornais de ontem sobre a entrevista presidencial da véspera a emissoras de rádio atentaram para as "barbaridades", como escreveu no Estado o jornalista Rolf Kuntz, que deram o tom e, com perdão da palavra, a substância de suas declarações.

Tome-se, por exemplo, a revelação de que chamou a atenção do ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, por ter anunciado o programa de ajuste fiscal de longo prazo "antes de se transformar em política de governo". E, lembrando o velho Chacrinha que não vinha para explicar, mas para confundir, Lula "explicou" a razão do puxão de orelhas, com as seguintes - e antológicas - palavras: "Eu não posso pensar uma coisa e sair falando, eu até posso, mas nenhum ministro pode pensarumacoisa e sair falando... "É um retrato irretocável - longe de ser o primeiro - do seu despreparo total para a função que exerce.

Antes de mais nada, se há alguém no Brasil que efetivamente não pode pensarumacoisa e sair falando é o presidente da República, ou porque se exporá ao ridículo quando pensar bobagem - caso crônico do atual titular do Planalto - ou porque, sendo o primeiro e não o últimoa falar, perderá a autoridade para arbitrar eventuais divergências na sua equipe a respeito de tais pensamentos. O que conduz ao mérito do episódio específico em má hora relatado por Lula. Ministros não cometem impropriedade alguma quando levam a público não idéias ao léu, mas projetos articulados, já objeto de exame dentro e fora do governo - e rigorosamente da alçada de sua pasta.

Se se tratava de chamar a atenção de um colaborador, pelos motivos alegados por Lula, admoestada deveria ter sido aministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, depois de suas rombudas e intrometidas afirmações a este jornal sobre o caráter supostamente "rudimentar" do plano de que falou Bernardo. Mas isso o presidente não podia fazer porque, a julgar por tudo o que se sabe, não é crível que ela tenha atacado o colega sem a anuência prévia ou o incentivo, mesmo, do chefe deles todos. Aliás, pouco depois da entrevista de Lula, certamente por encomenda sua, Dilma voltou a falar, desta vez como se já tivesse assumido a Pasta da Fazenda.

Mas, voltando à entrevista de quarta-feira, ainda falando de política econômica, Lula informou que a meta das metas é "devolver à sociedade o estado de bem-estar social que ela perdeu nos últimos 25 anos". Saibam os sociólogos e economistas, portanto, que o Brasil eraum"estado de bem-estar social"em1980. Ou seja, háumquarto de século, sob o regime militar, o quadro social brasileiro lembrava antes a Escandinávia do que a imaginária "Belíndia" de que falavam os críticos. E saibamos historiadores que era umdesinformado o general-presidente que afirmou: "A economia vai bem,mas o povo vai mal."

Em dado momento, fazendo o que mais gosta - se auto-elogiar -, Lula se gabou de ter boa memória. Tão boa, por sinal, que, se ouvisse um dado naquele momento, seria capaz de repeti-lo ao interlocutor daí a 30 anos. Então, se a memória não lhe falta, só pode ser por alheamento que ora situou a taxa de juros oficial em 18%, ora em 19%. Foi preciso que um colaborador pressuroso colocasse diante dele um papel com números bem grandes: 18,5%. Isso, isoladamente, teria escassa ou nenhuma importância. Só que faz parte de um padrão que é uma versão piorada - para um dirigente nacional - do "Livre-pensar é só pensar", o mote do humorista Millôr Fernandes. No caso do presidente, é "Livre-falar é só falar".

Daí, por exemplo, ele dizer, em (tardia) defesa do deputado cassado José Dirceu: "Ora, se a gente não sabe as coisas que acontecem dentro de casa, por que num Estado o ministro tem que saber de tudo que acontece no território nacional?" Ora, ninguém cobrou isso - apenas era óbvio que, no partido do qual continuava a ser o homem forte, ele sabia de tudo que valia a pena saber.Oque, nos governos, se espera dos seus dirigentes máximos.