Título: Abaixo o senso comum!
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/12/2005, Espaço Aberto, p. A2

De duas, uma: ou o presidente Lula imagina presidir uma nação de idiotas ou o idiota sou eu. Não agüento mais ouvir os pronunciamentos de Sua Excelência. Além de esfaquear impiedosamente o idioma português, ele, com freqüência assustadora, desventra também o senso comum. Esta semana, em rede nacional de rádio, declarou que sem nenhum constrangimento levaria José Dirceu para o seu palanque, uma vez que "não foi provado nada" contra ele. Segundo Lula, o famigerado mensalão tampouco existiu. Se alguma irregularidade ocorreu, o culpado não é o governo nem o PT. É única e exclusivamente o Delúbio, "que inclusive já assumiu publicamente a responsabilidade". Ninguém subornou deputado algum, o que houve foi a prática de "caixa 2" eleitoral, uma irregularidade banal porque "todo mundo pratica no Brasil".

Lula tem idéias próprias a respeito de ética e política. Dias atrás declarou que na Venezuela - onde o governo local acaba de conquistar 100% das cadeiras do Parlamento - não tem falta, mas sim "excesso de democracia". Quanto ao seu próprio governo, ele pratica uma severa autocrítica. Inicia as suas frases com a assertiva de que "nunca antes no Brasil" se fez tanto ou quanto. Sua gestão não é brilhante apenas para consumo interno. "Estamos mostrando para o mundo" isto ou aquilo, costuma afirmar.

O tão propalado "espetáculo do crescimento" se resumiu até agora a um único ano, 2004, no qual o produto interno bruto evoluiu 4,9%. Umporcentual respeitável, mas mesmo assim bem abaixo da média dos demais países emergentes. A recente desaceleração da economia não é o suficiente para abrandar o seu delirante triunfalismo: "Estamos crescendo menos, mas de forma consistente" - sabe-se lá o que isso quer dizer.

Deve ser agradável conviver com uma pessoa tão otimista e positiva. Sua euforia é contagiante. É bem possível que seus companheiros de Palácio acreditem realmente que estão realizando "o melhor governo que este país já teve".

Lula, ao que parece, assimilou o método científico tão próprio da intelectualidade petista: quando os fatos não comprovam as teses, mantêm-se as teses e se descartam os fatos.

As teses, no caso, são as seguintes:

O PT é o único partido político, na História do Brasil, cujos origens e métodos são realmente populares e democráticos. Sendo popular e democrático, o PT, em suas ações, visa sempre o bem comum. Um governo compos topor gente do PT há de ser, necessariamente, ético, eficaz e virtuoso. Quando as coisas não dão certo, no governo do PT, a culpa não é do governo, mas sim dos seus opositores, que o sabotam e o intrigam perante a opinião pública. Se o PT, no poder, visa exclusivamente o bem comum, todos os meios são lícitos para a consecução de seus nobres objetivos. Quanto aos fatos - que devem ser convenientemente ignorados e descartados -, eles são evidentes: O PT, tão logo chegou ao poder, iniciou um processo de cooptação de adversários lastreado na transferência de várias dezenas de milhões de reais para os partidos que viriam a compor sua base aliada. Tendo ou não periodicidade mensal, o que se convencionou chamar de "mensalão" de fato existiu. Os pagadores são réus confessos e os beneficiários têm o seu nome e as quantias registrados na contabilidade dos bancos que intermediaram as operações. Oferecer vantagens indevidas a autoridades públicas - no caso, parlamentares - em razão do cargo que exercem constitui crime de corrupção ativa, devidamente previsto e cominado no Código Penal. É absolutamente improvável que operações financeiras de tal vulto se tenham dado por iniciativa isolada do tesoureiro do PT e sem o conhecimento e a anuência das autoridades maiores do partido. Se o dinheiro tem um destino, ela há de ter, necessariamente, uma origem. Não é crível que o PT, para honrar seus compromissos, se tivesse atolado em gigantescas dívidas bancárias se não tivesse a certeza de que haveria receitas para saldá-las, depois. Como as receitas próprias do partido não são suficientes para cobrir uma ínfima parte dos empréstimos contratados, por que razão os bancos concordaram em fazê-los? De onde viriam, ou vieram, os recursos necessários para honrar essas dívidas? Sendo o governo o único possível beneficiário da compra de parlamentares - que só têm a oferecer, emcontrapartida, os seus votos -, é inconcebível que os seus titulares desconhecessem a prática de tais transações. De acordo com o discursode Lula, nenhum desses fatos tem a menor relevância. Até provas em contrário - e que provas ainda são necessárias?! -, Dirceu é um homem honrado, o PT é um partido impoluto e "nunca antes no Brasil" houve um governo tão ético e transparente.

O que mais preocupa é o fato de que a oratória do presidente é contagiante. Fiéis ao princípio nazista de que uma mentira mil vezes repetida acaba por se tornar verdade, os militantes petistas já saíram da defensiva e, sem pejo nenhum, voltaram a praticar o seu surrado discurso da ética e da decência na política.

As eleições vêm aí. Dependendo de seus resultados, nós saberemos a verdade. Se Lula é apenas meio doido ou se ele é um brilhante psiquiatra de 180 milhões de doidos.