Título: O Congresso e o comércio exterior
Autor: Eduardo Matarazzo Suplicy
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/12/2005, Espaço Aberto, p. A2
Um projeto de lei de minha autoria, que estabelece um mandato para negociações comerciais, foi objeto de críticas em editorial recente deste jornal e em artigo publicado nesta página pelo embaixador Rubens Barbosa (13/12). Alegou-se que o projeto seria inconstitucional, pois o Congresso não poderia definir objetivos para negociações comerciais (OMC, Alca, Mercosul-União Européia e acordos com outros países em desenvolvimento). Essa questão foi cuidadosamente analisada durante a tramitação do projeto no Senado (PLS 189/2003). Ele foi aprovado consensualmente, depois de ter passado pela Comissão Mista do Mercosul, pela Comissão de Constituição e Justiça e, em caráter terminativo, na Comissão de Relações Exteriores do Senado. Na Câmara, onde tramita como PLC 4.291/2004, já foi aprovado na Comissão de Desenvolvimento Econômico, após a realização de audiência pública.
O artigo 84 da Constituição, que estabelece as atribuições do presidente da República, inclui no seu inciso VIII a de "celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional". O projeto, portanto, não invade a competência do Executivo. Ele apenas define parâmetros para que o Congresso possa desempenhar com mais eficácia a sua atribuição de referendar os acordos.
Como ressaltam os pareceres dos relatores nas diferentes comissões - deputado João Hermann Neto (PPS-SP), senador Pedro Simon (PMDB-RS), senador Marcelo Crivella (PL-RJ) e deputado Júlio Redecker (PSDB-RS) -, a Constituição refere-se à questão em dois outros artigos. O "caput" do artigo 48 diz que cabe ao Congresso dispor sobre todas as matérias de competência da União, entre as quais se inclui o comércio exterior, conforme o artigo 22, inciso VIII. O artigo 49, inciso I, dá competência exclusiva ao Congresso Nacional para "resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional".
Note-se o caráter pluripartidário do apoio ao projeto de lei, reflexo do fato de que os parlamentares não mais aceitam o papel relativamente passivo que o Congresso desempenhou no passado nessa matéria. O senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), por exemplo, apoiou o projeto e propôs uma emenda, parcialmente acolhida, que reforçou o papel do Congresso. Na Comissão de Desenvolvimento Econômico na Câmara, o deputado Delfim Netto (PMDB-SP), de inegável experiência em matéria de negociação internacional, recomendou o voto favorável - e ele foi aprovado.
O editorial do Estado informa incorretamente que o projeto sofreu apenas "pequenos retoques" durante a sua tramitação, desde maio de 2003. Na verdade, houve diversas mudanças relevantes. Surgiram algumas resistências no Itamaraty e em outros ministérios, mas depois de longas discussões, que resultaram no seu aperfeiçoamento, se compreendeu que a iniciativa fortalece os nossos negociadores.
Lamento que o editorialista do Estado não tenha percebido que críticas pertinentes feitas em editorial anterior deste mesmo jornal, publicadas em 19/8/2003, resultaram em modificações do projeto. Dois aspectos criticados por este jornal foram excluídos: 1) A referência à substituição de importações como um dos objetivos gerais da negociação; e 2) a orientação para nossos negociadores buscarem dispositivos que, em caso de dificuldades cambiais do País, previssem a adoção pelos países mais desenvolvidos de medidas para aumentar a absorção de exportações brasileiras.
Outra crítica daquele editorial do Estado que também foi acolhida diz respeito à determinação de negociar as disciplinas relacionadas a temas como serviços, investimentos, propriedade intelectual e compras governamentais exclusivamente nos foros multilaterais da OMC e da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI). Em 2003, este jornal observava, com razão, que essa norma não deveria ser aplicada a todas as negociações. "Regras de investimento e de compras governamentais", dizia o Estado, "podem ser interessantes para o Brasil em acordos com vários parceiros, a começar pelos latino-americanos." Pois bem, na sua forma atual, o projeto preserva expressamente, no seu artigo 3, inciso I, a possibilidade de que, nesses quatro temas, se busque o aprofundamento do Mercosul e de outros mecanismos de integração entre países em desenvolvimento.
No editorial mais recente, o Estado mostra-se incomodado com o fato de que o projeto de lei contemple a questão dos direitos sociais. O projeto sugere que o Brasil estimule, não com caráter impositivo, a maior homogeneização dos direitos sociais, como a garantia de uma renda básica de cidadania, nos seus esquemas de integração com países em desenvolvimento, em especial da América do Sul. Os países desenvolvidos hoje têm programas de transferência de renda com fortes efeitos sobre a competitividade de suas economias. Na medida em que o Brasil tem o programa Bolsa-Família e aprovou a instituição gradual de uma renda básica de cidadania, é importante que os países vizinhos venham a se inteirar dessa experiência e considerar a aplicação de programas desse tipo.
Para que o leitor seja informado corretamente sobre o assunto, reproduzo na íntegra o único trecho do projeto (artigo 3, inciso XI) que faz referência a programas sociais: "A atuação brasileira em negociações comerciais visará como resultado o fortalecimento dos esquemas de integração com países em desenvolvimento de que o Brasil faça parte, em especial do Mercosul e da América do Sul, inclusive por meio da definição e gradual introdução, em tais esquemas, de políticas comuns, não só em matéria econômica, comercial e financeira, mas também em temas de direitos sociais e de cidadania a serem assegurados, como os referentes à garantia de uma renda mínima ou renda básica de cidadania e direitos de aposentadoria."