Título: O Paraguai salvou a reunião
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Fonte: O Estado de São Paulo, 11/12/2005, Notas e Informações, p. A3

Se dependesse da Argentina, melhor dizendo, do presidente Néstor Kirchner, a Venezuela já seria membro pleno do Mercosul. Como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não pretende - por razões que só ele conhece - criar qualquer tipo de dificuldade para Kirchner, que por sua vez não se cansa de contrariar as pretensões do Brasil, e não tem disposição para enfrentar o belicoso coronel Hugo Chávez, até quinta-feira dava-se por certa a admissão plena da Venezuela no Mercosul num processo sumário. Isso seria um completo desatino. Chávez ficou isolado na Comunidade Andina depois que Peru, Equador e Colômbia começaram a negociar acordos de livre comércio com os Estados Unidos - país que o presidente venezuelano odeia. E buscou apoiar-se no Mercosul, anunciando-se como paladino das forças que impedirão a criação da Alca. O problema é que o Mercosul já tem problemas suficientes para arrumar mais um, tornando-se palanque e ponto de apoio para uma cruzada antiamericana que só interessa aos objetivos "bolivarianos" de Chávez. E depois porque a Venezuela faz parte da união aduaneira da Comunidade Andina, não fazendo nenhum sentido aderir a outra união aduaneira, o Mercosul. A Venezuela não teria como se equilibrar entre duas tarifas externas comuns.

Na reunião de cúpula do Mercosul, terminada ontem, o Paraguai salvou o dia. Por sua iniciativa, a Venezuela não será tão cedo nem membro pleno nem Estado associado. Será "membro em processo de adesão", uma invenção política que permitirá às autoridades venezuelanas participar das reuniões do Mercosul, podendo manifestar opiniões, mas não tendo direito a voto. Caracas também não terá qualquer tipo de ingerência nas negociações do Mercosul com outros países ou blocos econômicos, como a União Européia, para a formação de áreas de livre comércio.

Uma comissão ad hoc foi constituída para apresentar em maio de 2006 uma escala dos passos que a Venezuela terá de seguir para obter a adesão plena ao Mercosul. A partir de então a Venezuela terá 180 dias para apresentar um plano de convergência de sua legislação com as regras do bloco. Esse prazo poderá ser prorrogado, mas ao fim Caracas terá de aderir completamente à Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul - a despeito de suas muitas perfurações - e aprovar todos os tratados e acordos internacionais assinados pelo Mercosul.

Se dependesse do agressivo ativismo de Kirchner e da passividade de Lula, o Mercosul estaria se adaptando para receber em tempo recorde a Venezuela, ou seja, se desfigurando ainda mais como união aduaneira e bloco com objetivos comerciais e políticos. Graças ao bom senso do presidente Nicanor Duarte, será a Venezuela a acomodar-se à estrutura política e jurídica do Mercosul.

O presidente Néstor Kirchner tentou precipitar o ingresso da Venezuela no Mercosul visando a dois objetivos. Um era acolher a Venezuela no bloco do sul, no momento em que Caracas se isolava dos países andinos e, com isso, reforçar o que crê seja um relacionamento especial com Chávez, que tem usado os dólares obtidos com o petróleo para tirar o governo argentino de algumas enrascadas financeiras. Outro era contrabalançar o peso natural do Brasil no Mercosul, introduzindo na equação a ambição de liderança regional demonstrada por Chávez. Essa, aliás, é uma das mais trágicas ironias resultantes do malogro da política externa petista. Um dos pilares dessa política era a transformação do presidente Lula em líder inconteste da América do Sul - papel que lhe foi escamoteado pela exuberante agressividade de Hugo Chávez.

A jogada argentino-venezuelana não deu o resultado esperado. Mas a reunião de cúpula de Montevidéu serviu, mais uma vez, para demonstrar que há cada vez menos esperanças de reverter o quadro de decomposição do Mercosul. A isenção da TEC para a importação de bens de capital de terceiros países mais uma vez foi prorrogada, o mesmo acontecendo com uma lista de mais de cem produtos. E, com isso, o Mercosul ficou de três a cinco anos mais distante de se transformar numa verdadeira união aduaneira.

A convergência de políticas macroeconômicas, uma medida prática necessária para a consolidação do bloco, ainda hoje é matéria de discussões acadêmicas. E, no plano institucional, o Parlamento do Mercosul não passará de um clube de debates, no futuro previsível.