Título: O Mercosul na visão do PT
Autor: Rubens Barbosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/12/2004, Primeira Página, p. A-2

A exemplo dos governos anteriores, o Mercosul ocupa, corretamente, um lugar de relevo na politica externa do governo do PT e e a base da estrategia visando a fortalecer uma uniao politica e economica da America do Sul. A novidade, no atual governo, reside no fato de que o fortalecimento do Mercosul esta no centro de uma visao geopolitica, segundo a qual o Brasil deve atuar no sentido de influir para evitar a vinculacao da regiao aos interesses estrategicos dos EUA e de favorecer a gradual evolucao de um sistema internacional unipolar, com os EUA como unica potencia hegemonica, para um sistema multipolar e conflitivo. Pronunciamentos de altas autoridades brasileiras ajudam a melhor entender essa visao, quando afirmam que o Brasil quer transformar a geografia economica do mundo e mudar o eixo comercial brasileiro das regioes americana e europeia, hoje nossos principais parceiros comerciais, para a Asia e Sul-Sul.

A ARGENTINA NÃO DEIXA ALTERNATIVA AO NOSSO GOVERNO SENÃO ENDURECER

Nao deve constituir surpresa, assim, o tratamento de pai forte para filho fraco dispensado, ate aqui, a Argentina, que, por pouco, nao implicou a aceitacao da inaceitavel proposta de criacao de salvaguardas permanentes em frontal desrespeito ao Tratado de Assuncao. A crescente reacao empresarial e a intransigencia argentina, agravada pelo boicote de Kirchner a cupula sul-americana de Cuzco, nao deixaram alternativa ao governo brasileiro senao endurecer, pela primeira vez, e rejeitar as propostas na forma como foram apresentadas. Na visao do atual governo, contudo, o entendimento entre os dois paises e fundamental para que oMercosul possa evoluir de um esquema neoliberal de integracao aberta para um esquema de desenvolvimento economico regional. Caso Kirchner nao participe da reuniao de Ouro Preto, os atritos comerciais adquirirao contornos politicos graves, o que pode por em risco a estrategia do PT para o Mercosul. A crise na area economica e comercial que tem abalado o Mercosul, nos ultimos anos, esta afetando a credibilidade externa do Mercosul e reduzindo o grau de confianca empresarial nas vantagens da integracao sub-regional. Ocorrem-me esses comentarios a proposito da reuniao do Conselho do Mercosul, em Ouro Preto, no final desta semana. Os presidentes, acompanhados pelos Estados associados (Bolivia, Chile e Peru), dificilmente terao condicoes de enfrentar o seguido descumprimento das regras vigentes, a real dificuldade para revitalizar o Mercosul. Sera dificil tambem fazer avancar o programa de trabalho proposto pelo Brasil em 2003, transformado nos Objetivos para 2006. Nao ha consenso, entre outras medidas, sobre a eliminacao das perfuracoes na aplicacao da Tarifa Externa Comum (TEC) . que tanto dificultam as negociacoes comerciais ., a mudanca das regras de circulacao de bens entre os paises membros, com vista a evitar a cobranca dupla da TEC, a definicao de regras para a aplicacao da receita da TEC e mesmo para a completa internalizacao das regras aprovadas pelos quatro paises. ¡°O que fazer?¡±, poderia perguntar um ideologo do PT. Diante das dificuldades praticas e politicas para examinar uma agenda comercial substantiva, a alternativa e partir para medidas simbolicas, a fim de demonstrar a vontade politica dos paises membros de tentar superar as atuais dificuldades por que passa o Mercosul. E isso o que, aparentemente, vai acontecer na reuniao do Conselho, quando algumas das principais decisoes estarao focalizadas na questao da reforma institucional do Mercosul, prevista dez anos atras no artigo 47 do Protocolo de Ouro Preto. Nao esta prevista modificacao institucional do Mercosul que implique a criacao de qualquer entidade supranacional e que venha a substituir o regime intergovernamental hoje vigente, mas e possivel que se faca uma avaliacao do processo decisorio. Nesse contexto, parece oportuno que se comece a discutir a questao do processo decisorio no Mercosul, que, por sua delicadeza, sempre foi deixado para uma etapa posterior, mas que, em algum momento, tera de ser enfrentada pelos paises membros. O principio do consenso, e nao do voto ponderado, como ocorre na Uniao Europeia, e o sistema aplicado no Mercosul. A Secretaria Tecnica do Mercosul, examinando a questao da institucionalidade do Mercosul, entre outras propostas, sugere a criacao de orgaos com carater supranacional, que poderiam exercer, pelo menos, duas funcoes: a administracao de uma politica comum e a aplicacao judicial do direito da integracao. Antes de examinar a possibilidade de adotar o principio da supranacionalidade para algumas instancias, seria importante rever o sistema de tomada de decisoes do Mercosul, de forma a responder a perguntas tais como: deve ou nao a regra do consenso permanecer intocada? Caso existam materias que possam ser objeto de decisao qualificada, mediante voto, quais seriam essas materias? Deve ou nao ser introduzida a nocao do voto ponderado, com base em parametros previamente definidos e acordados? Nao sao questoes retoricas, mas de profundo sentido politico, que merecem um esforco de reflexao conjunta entre os quatro parceiros e no ambito de cada um dos paises. Pelas implicacoes que a cessao de soberania acarretara, os diferentes segmentos da sociedade brasileiras, inclusive o setor privado, deveriam manifestar-se. A eventual criacao de instancias supranacionais, sem a introducao do voto ponderado, que reflita o peso relativo dos paises membros, tera implicacoes para futuros governos e, quando apresentada, devera ser examinada pelo Congresso, com todo o cuidado que tratados que afetam a soberania do Pais devem merecer.¡Ü Rubens Barbosa, consultor, presidente do Conselho Superior de Comercio e Exterior da Fiesp, foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos e na Gra-Bretanha