Título: Brasil, a parte fraca
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Fonte: O Estado de São Paulo, 14/12/2004, NOTAS & INFORMAÇÕES, p. A-3

OMercosul chega ao décimo aniversário atolado na maior crise de sua história e sob ameaça de novas medidas protecionistas da Argentina. Só a persistência do governo brasileiro permite que se mantenha, oficialmente, a união aduaneira formada por Brasil, Argentina, Paraguai eUruguai. Na prática, essa união é fictícia, pois nem como área de livre comércio, um estágio inferior de integração, o bloco funciona direito. Aameaça de novas medidas protecionistas partiu de uma ¿alta fonte do Ministério da Economia¿, na sexta-feira, e foi noticiada pelos jornais Clarín e La Nación. A declaração foi feita depois da fracassada reunião de vice-ministros emque se discutiu, durante sete horas e meia, a pretensão do governo argentino de introduzir salvaguardas no comércio entre os quatro países. No dia seguinte, o chanceler Rafael Bielsa disse que seu governo seria ¿irredutível com o Brasil¿. Diplomatas brasileiros e argentinos combinaram retomar o assunto em janeiro, deixando-o fora da 27.ª Reunião de Cúpula do Mercosul, marcada para esta semana em Belo Horizonte e Ouro Preto. As discussões preparatórias do encontro de presidentes começaram ontem na capitalmineira. Mas a crise não desaparece apenas porque o debate das salvaguardas foi excluído, oficialmente, da pauta dessa reunião. Ao contrário, a crise tende a prolongar-se porque o governo brasileiro não se dispõe a agir com realismo. Na reunião de sexta- feira, emBuenos Aires, a delegação do Brasil poderia ter simplesmente dito um não definitivo à proposta das salvaguardas. Não haverá um debate razoável enquanto o governo brasileiro aceitar propostas ou medidas incompatíveis com o livre comércio e com a efetiva cooperação regional. Para efeitos práticos, marcar uma nova discussão para janeiro é admitir, em princípio, que o País poderá concordar com a instituição desse mecanismo protecionista. Qual seria o custo, para o Brasil, se o governo simplesmente rejeitasse a idéia? O governo argentino denunciaria o acordo e abandonaria o bloco? Não é certo que o presidente Néstor Kirchner estivesse disposto a dar esse passo, nem que seria melhor evitá- lo, se essa fosse mesmo a sua disposição. É evidente que a diplomacia brasileira continua a agir como se o Mercosul interessasse mais ao Brasil que aos parceiros e, portanto, o País devesse pagar um extra pela manutenção do bloco ou da união aduaneira. É igualmente óbvio que as autoridades argentinas têm sabido explorar, com exigências cada vez maiores e cada vez menos razoáveis, essa fraqueza do governo brasileiro. Isso contrasta comicamente com a idéia de que o Brasil deve ser paciente por ser a economia mais forte, uma fantasia exposta em público, mais de uma vez, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele repetiu esse discurso mais uma vez na reunião de presidentes sul-americanos em Cuzco, no Peru ¿ um evento ostensivamente esnobado pelos demais chefes de governo do Mercosul. Ofato inegável é que o Brasil assumiu, politicamente, a condição de parte mais fraca e mais pressionável nos debates do Mercosul, especialmente nos confrontos com a Argentina. O governo brasileiro não se deu conta de que uma coisa é reconhecer que os sócios do bloco são desiguais e que é razoável, com a cooperação dos mais fortes, diminuir essa desigualdade. Outra completamente diferente é assumir o papel de quem deve pagar todas as contas da integração e aceitar irrestritamente as posições dos parceiros, que se mostram muito mais cooperativos quando tratam com potências de fora do Mercosul. É ilusório, portanto, discutir formas de aprofundamento da integração, no encontro presidencial em Minas, quando só o Brasil se mostra disposto a aceitar obrigações. Seja qual for a pauta oficial, o interesse do governo argentino, neste momento, é criar mecanismos de proteção, no interior doMercosul, que neutralizem o poder de competição de vários setores produtivos do Brasil. As discussões e as cerimônias previstas para Belo Horizonte e Ouro Preto só servirão para fortalecer o Mercosul se o governo brasileiro entender, afinal, que sólidos compromissos não se constroem com demonstrações de fraqueza, mas com realismo.

O GOVERNO AGE COMO SE O PAÍS FOSSE O ÚNICO BENEFICIADO PELO MERCOSUL