Título: Médicosaindabarrama prática legal
Autor: Adriana Dias Lopes
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/12/2004, VIDA &, p. A-14

Na maioria dos casos, há resistência ao aborto,mesmo quando a lei permite

Dos 6.120 hospitais públicos do Brasil, 44 praticam o aborto chamado legal. É muito pouco e não só pelo número de lugares. O aborto legal ¿ praticado até a 20.ª semana de gestação e quando a grávida corre risco de vida ou é vítima de estupro ¿ é permitido no Brasil desde 1940. Mesmo assim, o primeiro centro de prática do aborto legal só foi criado em 1989, no Hospital Municipal Doutor Arthur Ribeiro de Saboya, em São Paulo, conhecido como Hospital do Jabaquara. Uma das principais barreiras para que o número de lugares aumente é a resistência do médico em realizar o aborto. ¿A maioria prefere não fazer¿, afirma o ginecologista Pedro Pablo Magalhães Chacel, vice-presidente da corregedoria do Conselho Federal de Medicina.E o artigo 28 do capítulo 2 do Código de Ética Médica diz que o profissional pode recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários à sua consciência. ¿Eles usam o código como justificativa e isso é umhorror¿, avalia Irotilde Pereira, que, além de ser assistente social do Hospital do Jabaquara, é uma das coordenadoras do Programa de Aborto Legal nos Hospitais Públicos, trabalho que começou em 2000 e tem como objetivo visitar locais públicos de saúde para divulgar a existência do aborto legal e treinar os profissionais envolvidos. ¿Já é uma dificuldade a mulher que sofre estupro chegar até os hospitais, imagine se ela enfrenta problemas nesses lugares.¿ Para Chacel, do CFM, o aborto é um dos atos médicos mais difíceis de ser praticados e não só por questões religiosas: ¿O compromisso do médico é com a vida. E o feto, a princípio, teria vida se permanecesse no útero da mãe.¿ O médico Jorge Andalaft Neto, coordenador do Programa de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital do Jabaquara e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), complementa:¿Ogrande dilema do médico é o feto vivo. Os médicos são treinados para defender a vida.¿ DOSSIÊ De acordo com Irotilde, há Estados do Centro-Oeste, por exemplo, onde há instituições preparadas para fazer o aborto legal, mas faltam médicos. O trabalho deverá virar um dossiê nos próximos anos, com o grupo Católicas pelo Direito de Decidir, ONG com sede em São Paulo. ¿O curioso é que a polêmica toda é só quando o aborto é resultado de estupro¿, conta a assistente social. As gestantes têm também seus dramas, claro. Um dos principais é a burocracia de alguns hospitais quando se trata de aborto legal. ¿Em alguns lugares os médicos pedem até autorização para o juiz antes de fazê-lo¿, explica Andalaft Neto. Ohospital que pratica o aborto legal não precisa pedir essa autorização. ¿Cada hospital tem seu procedimento para garantir que se trata de uma gestação fruto de estupro¿, completa. O medo de praticar um ato ilegal, no caso de alguma eventualidade, é outro obstáculo entre os médicos. A pena prevista para o médico que faz o aborto clandestino com o consentimento da mãe varia de 1 a 4 anos de reclusão. ¿Mas são raríssimos os casos em que a mulher ou o médico receberam punição legal até hoje¿, diz a advogada Adriana Gragnani, do núcleo de pesquisas da mulher da Universidade de São Paulo. ¿Quase sempre há acordos.¿ Na maioria dos lugares, além de entrevistas, a gestante tem de levarumboletim de ocorrência e assinar um documento se responsabilizando por todas as informações fornecidas ao hospital. ¿O exame de corpo de delito é praticado, mas por uma minoria¿, afirma Irotilde. No Hospital do Jabaquara, dos 25 abortos legais ou com autorização judicial realizados no ano passado, 3 foram de fetos com malformação, 4 de gestantes em risco de vida e 18 de estupro.