Título: Insanidade política
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/12/2004, Notas & Infomações, p. A3

É simplesmente inconcebível que as manifestações do presidente do Senado, José Sarney, e dos ministros Aldo Rebelo, da Coordenação Política, e Luiz Gushiken, da Comunicação, em favor da extensão do mandato presidencial para seis anos, sem direito à reeleição, sejam, conforme se especula, a ponta do iceberg de uma trama para assegurar a permanência de Lula no Planalto até 2012. O golpe - ou melhor, a insanidade - consistiria em se adotar a mudança já no segundo mandato que o presidente espera alcançar em 2006 e que assim passaria a ter mais dois anos. Se armação existe, Lula não há de compactuar com ela. Admitir o contrário seria atribuir-lhe nada menos do que intenções golpistas. Ainda assim, a versão de que as referidas declarações representariam um "movimento sincronizado", como escreveu um comentarista político, clama por um desmentido imediato e cabal. Basta o presidente da República fazer saber, em termos absolutamente inequívocos, que ele é, sim, favorável a um único período de governo superior a quatro anos, o que jamais escondeu - mas não apenas não patrocinará, como combaterá qualquer projeto de emenda constitucional nesse sentido que possa entrar em vigor durante a sua investidura, mesmo se ratificada por uma consulta popular, como se aventou. A palavra do presidente é imprescindível porque só ela será convincente. Podem Sarney, Rebelo e Gushiken vir a público dizer que não pensavam em Lula quando louvaram os benefícios da mudança, que passaria a integrar e dar alento à reforma política em eterna tramitação no Congresso. O mero fato de não terem sido taxativos a respeito desde a primeira hora pode ser considerado suspeito. Mesmo o ministro Gushiken, que mais perto chegou de separar as coisas, além de remeter a questão ao Legislativo, ficou aquém do desejável. "O debate presidencial não é assunto do governo", assegurou, antes de abrir a brecha: "Agora, se outros partidos colocam isso na pauta, isso é um problema de outros partidos." Não: o problema é do País. De um lado, porque, quando se começa a discutir a duração do mandato presidencial - assim, sem mais nem menos -, os desdobramentos da iniciativa são imprevisíveis, podendo configurar um risco institucional. De outro lado, porque, embora seja defensável a tese de que, para a governança, seis anos sem reeleição é uma alternativa melhor do que oito com reeleição, a discussão é escandalosamente prematura. A reeleição foi instituída há meros sete anos, só um presidente exerceu dois mandatos, pela vontade do eleitorado, e o seu sucessor está às vésperas de completar apenas a primeira metade do período de governo para o qual foi eleito. O modelo, portanto, ainda engatinha - e falta muito para que enfrente o teste do tempo. Por motivos freqüentemente subalternos, os políticos brasileiros, aliás, têm o vezo de querer mudar as regras do jogo eleitoral antes de ficar demonstrado que elas precisam mudar. Em 1997, houve quem desejasse acabar com o segundo turno das eleições para presidente, governadores e prefeitos de municípios com mais de 200 mil eleitores. Isso quando o sistema tinha sido aplicado somente duas vezes, no ano anterior e em 1994. Hoje, depois de mais três pleitos no gênero, está claro que a democracia brasileira ganhou com a escolha de mandatários para o Executivo em duas etapas, quando a primeira não bastar. No caso da reeleição, à parte a hipótese aberrante de que o presidente Lula queira espichar o segundo mandato que ainda não lhe foi conferido, é cedo demais até para pensar na mudança a partir de 2010. Antes disso dificilmente se saberá dizer qual das opções é mais conveniente para o País. "A gente não deve ficar toda hora mudando regra eleitoral", advertiu, com carradas de razão, o governador paulista Geraldo Alckmin. "Não se consegue nem consolidar uma legislação e já se quer mudar de novo." Os tributaristas têm um ditado que se aplica também às instituições. "Imposto bom é imposto velho", dizem, em louvor daqueles que o passar dos anos consagrou. Em suma, não há a menor justificativa para que a extensão do mandato presidencial entre na ordem do dia. E há boas razões para mantê-la à margem da agenda política pelo menos durante esta década.