Título: Sofismas tributários
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

Este jornal publicou ontem entrevista em que o secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, procurou explicar as novas medidas tributárias com que o governo federal brindou a Nação às vésperas da virada do ano. As novas medidas vieram pela Medida Provisória (MP) n.º 232, de 30 de dezembro, publicada às pressas numa edição extra do Diário Oficial da União do mesmo dia.

Na síntese da jornalista Lu Aiko Otta, que relatou a entrevista, o secretário explicou que "algumas empresas deverão pagar mais tributos em 2005, mas isso não quer dizer que houve aumento da carga tributária, pois é preciso levar em conta o universo de todos os contribuintes".

Entre outras medidas, a MP aumentará a retenção na fonte de tributos federais devidos pelas empresas relativamente à prestação de alguns serviços, como os de medicina, transporte e construção, com o que o governo espera arrecadar mais, em face da sonegação que identifica nesses setores. A MP também ampliará a tributação das empresas prestadoras de serviços que declaram o Imposto de Renda (IR) pelo regime de lucro presumido - nesse regime, presume-se um lucro de 32% com relação ao faturamento, porcentagem que passará a 40% a partir de abril, no caso da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), e a partir de 2006, no caso do IR. E, ainda, a MP deu maior sustentação jurídica à legislação anterior que tributa as variações cambiais a que estão sujeitos os valores de participações acionárias e de coligações de empresas brasileiras que atuam no exterior, com o que o governo também espera arrecadar mais.

Com todos esses aumentos da tributação das pessoas jurídicas, como isso não quer dizer que haverá aumento da carga tributária? Só recorrendo a sofismas é que se pode chegar a essa conclusão.

Nessa linha, e levando em conta o tal "universo dos contribuintes", o secretário afirmou que esses aumentos vieram como contrapartida da correção da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e dos seus limites de deduções, correção essa realizada de forma parcial, anunciada recentemente e oficializada pela mesma MP.

Ora, ao fazer essa correção o governo apenas reverteu parcialmente uma distorção - reconheça-se, herdada do governo anterior - decorrente de ter passado a arrecadar mais com a manutenção da tabela fixa. Isso enquanto os rendimentos nominais dos contribuintes avançavam pela escala progressiva da tabela, à medida que recebiam reajustes por conta do efeito da inflação, caindo, assim, em faixas de renda e alíquotas maiores.

Ou seja, com a correção da tabela, ainda que parcial, a carga estaria voltando a uma situação mais próxima da normalidade se comparada à carga artificialmente aumentada pela tabela fixa. Nessa perspectiva, os aumentos de impostos que vieram com a MP constituem efetivamente um aumento da carga, pois o próprio argumento de que vieram como contrapartida da correção de uma distorção significa reverter essa correção na sua dimensão de carga tributária e, assim, passar a uma carga mais elevada. Desta vez, contudo, sem o artifício da tabela do IRPF, mas como aumento explícito da carga tributária federal.

Ao explicar esses novos aumentos de impostos por si mesmos, há também o recurso a sofismas para justificá-los. Assim, no caso da ampliação do recolhimento na fonte por setores como os citados, o ganho de arrecadação, reconhecido pelo secretário, é explicado como decorrente do combate à sonegação. Mas não deixa de ser um aumento da carga tributária, medida pelo valor da arrecadação de impostos, independentemente do grau de sonegação, aumento esse relativamente à situação em que a tabela do IRPF foi parcialmente corrigida na distorção que apresentava. Ademais, se a sonegação for reduzida com a providência adotada, para manter a carga constante o governo deveria premiar todos os que recolhem regularmente, por meio de uma redução de carga correspondente ao ganho obtido com a menor sonegação.

Quanto à tributação dos ganhos das empresas que atuam no exterior, decorrentes das variações cambiais de seu capital investido lá fora, trata-se de assunto controvertido, pois essa tributação já estava nas regras da Receita Federal e algumas empresas não a recolhiam por força de decisões judiciais. Li notícias de que algumas empresas recorrerão também contra a citada MP. De qualquer forma, se a arrecadação crescer, também ocorrerá um aumento da carga, na mesma linha do argumento anterior, e novamente caberia uma redução correspondente para manter a carga constante.

No caso das empresas prestadoras de serviço que recolhem o IR com base no lucro presumido, para justificar o aumento o secretário recorreu ao princípio tributário que recomenda equiparar a tributação dessas empresas à das pessoas físicas. Esse princípio é defensável, mas não pode ser usado para justificar um aumento de carga, pois simetricamente serviria também para argumentar pela redução do imposto pago pelas pessoas físicas, com o objetivo de aproximá-lo da tributação atribuída a essas empresas.

Enfim, preferia ver o secretário a dizer, sem volteios, que, por conta da filosofia e do comportamento histórico da Receita Federal e de instruções superiores (mas sem afirmar, por razões óbvias, que são inspiradas pelo permanente anseio governamental de gastar mais), seu trabalho é o de não deixar a carga tributária cair. E, ainda, é o de aumentá-la sempre que houver oportunidades para tanto (em particular, a pretexto de aperfeiçoamentos da administração tributária, como os utilizados com sofismas na sua entrevista).