Título: O rei está nu?
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

Que o setentão Fernando Henrique Cardoso, referindo-se ao governo Lula, diga que "o rei está nu", pode não ser mais que uma metáfora maldosa lançada pelo líder da oposição. Mas que um garoto simples, de 11 anos, Cosme de Oliveira Júnior, cobre o presidente, convidando-o a ir "às ruas para ver a realidade de hoje", pois "a situação é precária", lembra em cheio o famoso conto de Andersen. O pequeno Cosme tem a idade daquele personagem criado pelo escritor dinamarquês, denunciando a nudez do rei perante a população amontoada nas ruas para aplaudir as vestes invisíveis de Sua Majestade, "tecidas" por aqueles espertíssimos alfaiates. FHC só forjou uma metáfora, ao passo que Cosme, à semelhança do garoto do conto, pode ter denunciado algo verdadeiro.

Todos sabem que o poder isola, afasta o governante das ruas e o aprisiona entre as quatro paredes do gabinete burocrático e dos salões suntuosos. O menino baiano, que foi aplaudido de pé por 300 pessoas, após ler sua mensagem no Palácio do Planalto, foi o mensageiro de milhões de brasileiros que reclamam de Lula maior contato com a realidade, furando o cerco implacável da publicidade oficial e dos aduladores de plantão alojados em sua corte.

FHC não deixa por menos: "Este governo é incompetente. É preciso dizer claramente que o rei está nu." Assim, na lata, sem papas na língua nem rodeios diplomáticos. O ex-presidente enfatizou sua crítica no momento exato em que os governantes, tomados de um surto de euforia, anunciavam o crescimento do PIB além das expectativas e a redução da taxa de desemprego. Por que razão FHC abriu a boca justamente nesse clima de comemoração festiva? Os franceses dizem "pour cause", por isso mesmo, para cumprir o papel da oposição, dirigindo um jato de água fria no entusiasmo do presidente e de seus 35 ministros. Não foi nenhum erro no "timing", e sim o contrário, um fogo de encontro muito bem calculado.

Fernando Henrique tem razão? O governo Lula será mesmo incompetente? O adjetivo é pesado demais, fecha a questão e estigmatiza definitivamente o Executivo. Além disso, encobre certos êxitos isolados na esfera federal, que seria injusto ignorar. Citemos a política econômica, o "boom" da agricultura e da pecuária, o crescimento das exportações e o desempenho da Polícia Federal no combate ao tráfico de drogas, ao contrabando, à corrupção e a todos crimes de sua alçada.

Seria imprudente apostar no fracasso global do governo Lula, menos pelas suas próprias virtudes do que pelo bafejo de circunstâncias favoráveis, como a bonança do mercado externo e o desatamento dos nós seculares que amarram a sociedade brasileira, que nunca esteve tão viva e tão mobilizada. Lula é vulgar, despreparado, populista? Sem dúvida que sim, mas aqui seria bom lembrar certa observação de Marcel Proust, o qual, com a clarividência habitual, assinala que "a vulgaridade de Balzac é o requisito indispensável de sua força literária". No metabolismo surpreendente da vida espiritual, o vício pode ser o material com que se constrói a virtude, e vice-versa. Este é o maior argumento contra todo tipo de maniqueísmo.

Portanto, em consideração à justiça e ao bom emprego das palavras, não cabe denunciar o governo Lula, em bloco, como "incompetente". O adjetivo cabível seria outro. Não se trata de um governo incompetente, mas de um governo amador. O incompetente é um caso perdido - erra sempre e não está apto a melhorar. O amador também erra muito, mas é capaz de acertar, e de acertos até surpreendentes. O ministro mais competente e bem-sucedido do atual governo é Antonio Palocci, um médico sem formação especializada em economia - um amador, portanto. O amador leva vantagem sobre o profissional e o especialista: é cabeça menos bitolada do que estes, dotado de mais elasticidade e jogo de cintura. Quando tem sorte e as circunstâncias colaboram, o sucesso está garantido. O deputado Delfim Netto, dono de um humor sibilino, que nem sempre diz o que parece, garante que certos médicos se provam bons economistas porque a circulação do sangue guarda analogia com a circulação das mercadorias na esfera econômica... Positivamente, os melhores economistas concordam em que a economia é coisa muito importante para ser deixada nas mãos dos economistas, como sabia outro brilhante e bem-sucedido amador, Roberto de Oliveira Campos.

Voltando à denúncia de FHC, será que "o rei está nu"? Novamente, outro exagero. Lula não é tão cego que desfile em público como se envergasse trajes magníficos. O que ocorre é que o rei não está nu, ele está é mal vestido. Seu figurino inclui algumas poucas peças puro Armani, como a camisa e a gravata, bem combinadas e de excelente gosto, a camisa e a gravata que são o que mais sobressai nas imagens e nas aparições públicas. Já as calças e o paletó estão completamente fora de moda, cor de burro quando foge e talhadas por um alfaiate de subúrbio, saudoso dos anos 50. A cueca é samba canção. Os sapatos, 44 bico largo e as meias, presente do MST, são vermelhas de doer na vista. O ombro esquerdo e o direito estão desalinhados. E os inúmeros bonés que coloca na cabeça lhe dão um ar pachola e populista, próprio para puxar cordão carnavalesco, bradando: "Que rei sou eu?"

Não, o governo não é incompetente, é amador. E o rei não está nu, ele está é obeso e mal vestido.