Título: Respeito aos contratos
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2005, Notas & informações, p. A3

A lguns governadores - e a eles se juntaram, no ano passado, prefeitos de algumas das 183 cidades que renegociaram suas dívidas - estão empenhados em uma campanha para transformar o Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados (/Proes) no bode expiatório de suas dificuldades financeiras. Atribuem à amortização da dívida consolidada pela União a falta de recursos para desenvolver programas sociais e de infra-estrutura, vale dizer, os programas de governo que anunciaram ao eleitorado.

Esses governadores passaram dois anos - no caso de alguns prefeitos, como a de São Paulo, Marta Suplicy, foram quatro anos, um mandato inteiro - tentando obter a anuência do governo federal para pleitos que, a pretexto de reduzir as prestações da dívida, na verdade abririam brechas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). E, justamente por isso, a equipe econômica manteve-se firme na exigência de que os contratos de renegociação da dívida fossem obedecidos à risca. E, assim, alguns governadores passaram a tentar obter na Justiça o que não conseguiram através da pressão política.

Os governadores do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Bahia recorreram ao Supremo Tribunal Federal, alegando que o nível de comprometimento dos recursos estaduais para pagar a dívida dificulta o pagamento da folha de salários do funcionalismo e reduz a capacidade de investimento de seus Estados. O governador Germano Rigotto, do Rio Grande do Sul, pede que as amortizações mensais da dívida consolidada fiquem restritas ao limite máximo fixado em lei, de 13% da receita líquida, pois o Estado estaria gastando 18%. Sustenta o governador gaúcho que a ação impetrada se destina a garantir o pagamento integral da dívida: "Pretende-se evitar que, por insuficiência de receitas inconstitucionalmente comprometidas com o pagamento da dívida pública, tenha o Estado de atrasar seus compromissos, inclusive junto ao funcionalismo público." Ocorre, no entanto, que o limite de comprometimento de 13% da receita líquida se refere à amortização da dívida consolidada nos termos do Proes - mas há Estados que têm outras dívidas com a União, não abrangidas pela grande renegociação, iniciada em 1997 e concluída em 2000.

Já a Bahia e o Rio de Janeiro pretendem que o Supremo mande excluir do conceito de receita líquida, ou seja, da base de cálculo para pagamento da dívida, a receita tributária destinada aos fundos estaduais de combate e erradicação da pobreza. Ora, o conceito de receita líquida, além de definido claramente no contrato assinado pelos Estados, está expresso na Lei de Responsabilidade Fiscal, que já passou pelo crivo da constitucionalidade do STF.

A consolidação da dívida dos Estados pela União, ao contrário do que afirmam alguns governadores e prefeitos, não é a causa das dificuldades financeiras dos entes federados, entendidas essas dificuldades como a insuficiência de recursos para realizar programas de governo. Em primeiro lugar porque, como observou o economista André Urani, diretor do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, em entrevista ao jornal Valor, a natureza do Estado mudou, nas últimas décadas, não sendo mais possível os governantes resolverem problemas estruturais no curto período de um mandato - e é disso, na essência, que se queixam governadores e prefeitos quando reclamam mais recursos.

Em segundo lugar, mas não menos importante, porque o Proes, do qual tanto se queixam, salvou Estados e municípios da bancarrota - fato, aliás, sistematicamente ignorado pelos governadores e prefeitos. A União assumiu, em números atualizados até agosto de 2002, R$ 230,7 bilhões devidos pelos Estados. O Rio de Janeiro consolidou uma dívida de R$ 33,4 bilhões; o Rio Grande do Sul, de R$ 16,7 bilhões; a Bahia, de R$ 6,9 bilhões. Pagam, por isso, 13% da receita líquida, de amortização, mais 6% a 9% de juros anuais, obviamente subsidiados, uma vez que a Taxa Selic que remunera os títulos públicos emitidos pela União para lastrear a repactuação está em 17,75% ao ano.

Sem o Proes, Estados e municípios estariam atolados em dívidas de curto prazo, e não de 30 anos, como agora, de rolagem cada vez mais difícil e cara - e certamente haveria menos dinheiro do que existe hoje para o atendimento às necessidades sociais e de infra-estrutura. É isso o que governadores e prefeitos precisam reconhecer e, em conseqüência, completar o ajuste fiscal dos entes federados que dirigem, em total cumprimento dos acordos que foram assinados.