Título: A carne e a Rússia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2005, Notas & Informações, p. A3

A Rússia desprezou os apelos do Brasil e manteve o País na categoria de "outros fornecedores" de carnes, ao definir as cotas de importação para 2005. Não há cotas individuais para essa categoria. Os países nela incluídos têm de lutar pelos pedaços de uma parcela residual do mercado. As maiores fatias, como em 2004, foram para os Estados Unidos e para a União Européia. O governo russo tem mais de um motivo para dar prioridade às maiores potências. São os parceiros comerciais mais importantes e, além disso, impuseram com firmeza suas condições para apoiar o ingresso da Rússia na Organização Mundial do Comércio (OMC). Brasília nem demonstrou a mesma firmeza, até agora, nem decidiu tratar os interesses comerciais do Brasil como prioritários. São preocupações menores para uma diplomacia empenhada em agitar bandeiras muito mais nobres e ideologicamente mais ambiciosas.

Russos, americanos e europeus, mais prosaicos, não desprezam os interesses comerciais concretos e imediatos. Aos Estados Unidos preservou-se o direito de exportar 771,9 mil toneladas de frango para a Rússia. A cota européia diminuiu ligeiramente, de 210 mil para 205 mil toneladas. O Paraguai continua com uma cota individual de 5 mil toneladas. Sobraram 68,1 mil para os "outros fornecedores".

O governo brasileiro, no entanto, manteve no alto de sua agenda, durante a visita do presidente russo Vladimir Putin, a obtenção de uma promessa de apoio à inclusão do Brasil entre os membros permanentes do Conselho de Segurança. Essa é uma promessa de custo baixo ou nulo para o dirigente russo. Além disso, nada garante que a reforma do Conselho venha a ocorrer. Putin deu a resposta que poderia satisfazer o governo brasileiro, nesse caso, e nada prometeu em relação ao comércio. Nem mesmo se comprometeu a suspender o embargo à importação de carne bovina, embora o pretexto alegado, um foco de aftosa na Amazônia, fosse tecnicamente insustentável.

A divulgação, no fim de dezembro, do esquema russo de importação de carnes para 2005 mostrou mais uma vez que o governo brasileiro fez papel de bobo durante a visita do presidente russo. Ou, pelo menos, confirmou que a diplomacia comercial de Brasília dá pouca importância aos assuntos materiais. Não tem preocupações de mascate, como disse recentemente um diplomata.

A distribuição das cotas de carnes bovina e suína também favoreceu ostensivamente os Estados Unidos e a União Européia, mantendo o Brasil na condição de parceiro irrelevante.

A União Européia poderá exportar para a Rússia 339,7 mil toneladas de carne bovina. Os Estados Unidos, 171,7 mil. O Paraguai, 3 mil. O Brasil deverá, em princípio, dividir 69,9 mil toneladas com os demais incluídos no grupo dos "outros".

No caso da carne suína, caberão 236 mil toneladas à União Européia, 53,8 mil aos Estados Unidos e 1 mil ao Paraguai, restando 176,6 mil para todos os "outros", incluído o Brasil.

Se os exportadores brasileiros têm obtido, na prática, um resultado melhor que o definido por essa política, é porque são competitivos e também porque outros nem sempre conseguem preencher o espaço que lhes é concedido. O Brasil foi beneficiado pela gripe do frango que dizimou as criações na Ásia. Mas um produtor como o Brasil, capaz de competir na linha de frente nas exportações de todos os tipos de carnes, não pode ficar na dependência de surtos de gripe aviária ou de doença da vaca louca noutros países.

O que se espera de um governo minimamente responsável e equilibrado é que defenda os interesses comerciais do País em todos os mercados, combatendo as barreiras protecionistas e ao mesmo tempo cobrando um tratamento eqüitativo aos produtores brasileiros.

Ao negligenciar esse papel, em nome de bandeiras ideológicas e de objetivos estratégicos discutíveis, o governo brasileiro simplesmente desconsidera o enorme esforço que os produtores nacionais têm feito para ganhar eficiência e para elevar a qualidade do que levam ao mercado. Isso ocorre não só em relação ao agronegócio. Esse é também o tratamento dado à indústria, quando seus interesses comerciais são postos em segundo plano em nome de uma geopolítica distante das questões concretas.