Título: Dólar vira problema de todos os países
Autor: Paul Blustein
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2005, Economia, p. B6

Contra o poderoso leu, moeda da Romênia, o dólar afundou 15% ao longo dos últimos cinco meses. Isso não é motivo de riso para Mary Ann Bell, de Middleburg, Virgínia, diretora-executiva de uma instituição de caridade chamada Empreendimentos Cristãos Romenos. A fraqueza da moeda dos Estados Unidos, disse Bell, "tem feito uma diferença enorme em nossa capacidade de cuidar dos pobres". Embora o orçamento anual de cerca de US$ 300 mil ainda seja adequado para financiar uma escola para crianças deficientes, a organização não pode mais enviar um médico a vilas nas montanhas para oferecer cuidados e remédios grátis. A instituição suspendeu os empréstimos sem juros que costumava conceder a famílias carentes e reduziu a quantidade de lenha que distribui para lares desesperados por calor. Talvez seja um exemplo extremo, mas as dificuldades da instituição ilustram as longas ramificações do declínio do dólar - de cerca de 16,5% desde seu pico de fevereiro de 2002 em relação a um grupo de moedas importantes. E a queda vem ganhando impulso há várias semanas. O declínio é sentido em âmbitos pequenos, como o aumento do preço que um turista americano paga por um prato de massa em Roma, e grandes, como a decisão de companhias estrangeiras de construir fábricas nos EUA como proteção contra os valores monetários flutuantes.

Na maior parte, o dólar mais barato ajuda a economia dos EUA ao tornar os produtos americanos menos caros em relação aos fabricados no exterior. Mas aos americanos como Bell só resta perguntar como isso pode ser bom se sua moeda agora compra muito menos no exterior do que antes - e muitos economistas concordam que as implicações no longo prazo poderão ser dolorosas.

A queda do dólar, afinal, resulta de um grande desequilíbrio na economia dos EUA, como ilustra o crescente déficit comercial do país. Como os americanos importam mais do que exportam - o abismo atinge cerca de US$ 600 bilhões por ano -, os estrangeiros efetivamente emprestam a diferença, investindo os dólares que recebem por seus produtos em ativos dos EUA, como títulos do Tesouro. O valor líquido que os americanos devem a estrangeiros disparou nos últimos oito anos, de US$ 360 bilhões para mais de US$ 3 trilhões. A quantia equivale a quase 30% da produção econômica anual do país. Quando mais esse tipo de endividamento aumenta, mais os estrangeiros podem relutar em continuar a comprar dólares.

Ninguém pode prever como este processo vai se desdobrar. Poderia ser na forma de uma repentina venda de ações e títulos dos EUA pelos estrangeiros, que poderia lançar a economia mundial numa recessão. Ou poderia ser muito mais gradual, com os estrangeiros exigindo rendimentos mais altos sobre o dinheiro que investem nos EUA, o que poderia provocar a alta das taxas de juros.

Mesmo os analistas que descontam as chances de uma crise acreditam que o dólar provavelmente ruma para uma baixa significativa nos próximos anos. Isso porque sua queda não deu sinal de encolher o déficit comercial para um nível que os economistas consideram administrável.

Como disse o presidente do Federal Reserve (Fed, banco central americano), Alan Greenspan, em novembro: "Dado o tamanho do déficit comercial, uma diminuição do apetite por dólares terá de ocorrer em algum momento."

Já fazem parte das histórias dos turistas os altos preços de um jantar em Paris ou uma estadia em Londres, refletindo o aumento do euro e da libra esterlina.

O outro lado do fenômeno pode ser visto na fronteira norte dos EUA, onde canadenses têm comprado produtos barateados pela queda do dólar americano em relação ao canadense. Eles são atraídos por notícias de jornais mostrando que uma visita a lojas perto de Buffalo poderia representar uma economia de até 20%.

Muito mais importantes em termos econômicos são a redução do custo, nos mercados globais, de máquinas, turbinas e aeronaves fabricadas nos EUA e a correspondente erosão da competitividade de produtos similares feitos no exterior. Nessa frente, a baixa do dólar tem sido uma bênção para a economia americana, alimentando as exportações e levando algumas firmas estrangeiras a transferir operações para os EUA. Não é de admirar que os economistas tenham ressuscitado as palavras de John B. Connally, que, como secretário do Tesouro durante o grande mergulho do dólar no início dos anos 70, disse aos colegas estrangeiros que o dólar é "nossa moeda, mas o problema é seu".

É problema do Canadá, por exemplo, o fato de a queda do dólar estar levando companhias como a Exco Technologies, de Ontário, a demitir trabalhadores e aumentar a produção nos EUA. Os acessórios internos para veículos que a Exco fabrica no Canadá ficaram caros demais no mercado americano nos últimos meses, e por isso a companhia decidiu transferir a manufatura para uma fábrica no Alabama. "Se o dólar (canadense) permanecer consistentemente acima de US$ 0,80, ou US$ 0,85, creio que todos concluiremos que existem partes de nosso negócio que, se forem vendidas nos EUA, tentaremos fabricar nos EUA", disse Paul Riganelli, diretor-financeiro da Exco.

Na Allegheny Plastics, na Pensilvânia, Clarke McGuire, o diretor de Operações, disse, referindo-se à queda do dólar: "Estou tentando ver um lado negativo para nós, mas não consigo." Os fabricantes de bens de capital como a Allegheny Plastics - companhias que produzem máquinas, geradores, chips de computador, instrumentos de medição e outros itens vendidos a empresas - são de longe os maiores exportadores dos EUA, tendo vendido quase US$ 300 bilhões para o exterior no ano passado.

As máquinas que a Allegheny Plastics vende para uso na produção do aço, que custam em média US$ 100 mil cada, estão se saindo muito melhor nos mercados internacionais agora que o dólar está em baixa em relação ao euro, disse McGuire. Quando o dólar atingia o pico há dois anos, afirmou ele, "não tínhamos capacidade de entrar muito nas fábricas européias", e as remessas para o outro lado do Atlântico representavam apenas entre 5% e 10% das vendas da companhia. Mas agora as exportações para a Europa chegaram a cerca de 30% das vendas e, como a maioria das concorrentes da empresa é européia, "podemos entrar em seu mercado doméstico e derrotá-las, e competir em pé de igualdade na Ásia".

A Allegheny Plastics não está só; ao todo, os fabricantes de bens de capital dos EUA exportaram, nos primeiros dez meses de 2004, 14% a mais do que no mesmo período em 2003.

A queda do dólar também causa um impacto significativo no setor automobilístico, que respondeu por US$ 210 bilhões em importações no ano passado, tornando-se um dos maiores colaboradores do crescente déficit do país. Na venda de carros, caminhões e utilitários esportivos, "as taxas de câmbio realmente fazem diferença", disse Paul Taylor, economista-chefe da Associação Nacional dos Revendedores de Automóveis. Ele observou que a fatia do mercado dos fabricantes europeus está diminuindo.

A britânica Jaguar tem um bom mercado na Europa, com uma alta de 24,5% nos novos registros de carros nos primeiros dez meses de 2004. Mas nos EUA as vendas caíram 15% e as perdas vêm aumentando à medida que a receita por veículo (em dólares), cai abaixo do custo de fabricação (em libras).

Alguns fabricantes de automóveis estrangeiros, em particular os japoneses, responderam aumentando a produção nos EUA ou pelo menos considerando essa possibilidade.

Esse é o tipo de dinâmica que deveria ajudar a corrigir o déficit comercial dos EUA. Até agora, porém, isso não ocorreu.