Título: A sociedade e o preso
Autor: Nagashi Furukawa e Pedro Armando Egydio de Carvalh
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

Recentemente, alguns operadores jurídicos teceram severas críticas ao decreto presidencial n.º 5.295/04, tomando-o por um "insulto à sociedade".

Impõe-se esclarecer o quanto segue. O indulto natalino nunca teve, por inspiração, o estímulo de uma política pública de esvaziamento de cadeias. Sua essência está bem fundada no comportamento do preso, a quem se concede a liberdade ou a comutação de pena, em certos casos e obedecidas condições expressas. Trata-se de um indulto coletivo, e não individual, razão por que deve atingir, pela sua própria definição, um número razoável de beneficiários, contemplados pela prudente clemência do chefe da Nação.

Embora este número devesse ser razoável, é bom esclarecer que o indulto coletivo, nos últimos anos, tem beneficiado pequeno número de sentenciados, ao contrário do que imaginam algumas pessoas que parecem querer usar o argumento do terror para justificar suas convicções pessoais contra quaisquer tipos de benefícios aos presos. São estes os números do indulto em nosso Estado: 2000 = 279; 2001 = 76; 2002 = 121; 2003 = 289 e 2004, até 27/12 = 310. Ou seja, em quase cinco anos, 1.075 beneficiados, num universo que conta hoje com mais de 130 mil presos. Nesse mesmo período, por outras razões (cumprimento de pena, sursis, livramento condicional, albergue domiciliar, etc.), saíram dos presídios paulistas 146.629 pessoas. Só neste ano foram libertadas até o dia 17 último 44.828 presos, sendo apenas 310 por indulto coletivo.

Mas, refutam os críticos, os indultados merecem semelhante prêmio? Para responder é preciso distinguir várias situações entrelaçadas nas perguntas. Primeiramente, indulto de Natal não é o mesmo que saída temporária. Nesta, os presos do regime semi-aberto, cumpridas as exigências legais, saem para suas casas em ocasiões singulares (Natal, Páscoa, Dia das Mães e outras festividades), devendo retornar ao estabelecimento em data e horário aprazados. No indulto natalino, ou o restante da pena é extinto (indulto pleno) ou fração dela é cancelada (comutação).

Feita a distinção, persiste a dúvida. Seja como saída temporária ou indulto pleno, o certo é que são essas pessoas assim agraciadas os autores dos crimes que tanto atemorizam os cidadãos livres, conforme noticiam os jornais, as rádios e as empresas de televisão. Há um sério equívoco nessa afirmação, ditado por um sofisma, um raciocínio falso, consistente em concluir mais do que permitem as premissas. Há um dado estatístico ponderável, colhido pela Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo: em média, 93% dos presos retornam aos presídios, na saída temporária, e apenas 7% se tornam fugitivos da lei. Destes 7%, a maioria vive na clandestinidade, sem cometer novos crimes. Portanto, aquele preso posto em liberdade, autor do crime noticiado pela imprensa, não representa todos os beneficiários de indulto ou saída temporária. Mais ainda: em pesquisa do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud), os cientistas inferiram que os egressos penitenciários têm maiores chances de ser reencarcerados do que outras pessoas que cometem delitos, pois os primeiros sofrem um processo que os torna alvos mais freqüentes da vigilância policial, não sendo necessariamente verdadeiro que eles cometam mais crimes do que o restante da população (fonte: Cadernos do Fórum São Paulo, Século XXI, página 89). Em linguagem acessível, o estudo mostra que o risco sermos atacados por um egresso ou por um cidadão honesto, sem antecedentes criminais, é o mesmo!

Por que, então, setores da sociedade, jurídicos e laicos, se insurgem indiscriminadamente contra os presos, julgando-os em bloco, a partir de exceções, exploradas de forma tendenciosa? A resposta, como diz o antropólogo René Girard, está na linha de um mecanismo social milenar de perseguição, de focalização de um grupo, o dos presos, para neles concentrar todo o ódio da sociedade, como se os condenados fossem bodes expiatórios.

O indulto natalino põe as coisas em seu devido lugar: estimula o respeito à disciplina carcerária, retira o beneficiário de uma prolongada e perversa promiscuidade prisional, atenua o problema dos procedimentos judiciais incrivelmente demorados e, antes de tudo, lembra a todos que o preso é um de nós, egresso de uma sociedade que tem estruturas injustas.

Deste modo, o decreto presidencial não constitui a nenhum título um insulto à sociedade, e, sim, um alerta para a inegável responsabilidade de cada um de nós diante da questão penitenciária. Se o medo do indulto, que permitiu a soltura de pouco mais de 200 presos por ano, chega ao ponto de se chamar o instituto de "insulto", por coerência, é bom que os críticos comecem a trabalhar também contra as outras modalidades de soltura, que permitiram a liberdade de mais de 140 mil presos nos últimos cinco anos em São Paulo.

Nagashi Furukawa é secretário da Administração Penitenciária de São Paulo. Pedro Armando Egydio de Carvalho é ouvidor da Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo