Título: Segurança pública e verbas irreais
Autor: Luiz Fernando Delazari
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

Sempre ouvimos dizer que todo brasileiro entende um pouco de futebol ou de política. Nos últimos anos, com o aumento da escalada da violência urbana, os brasileiros também passaram a discutir e manifestar opiniões sobre um novo tema "popular": a segurança pública, assunto quase que obrigatório nas rodas de bares, conversas entre pais e filhos, festas sociais e nos corredores das empresas. A intenção deste artigo é ampliar o debate e aprofundar o raciocínio sobre as verbas irrisórias que o governo federal pretende repassar a todas as Secretarias da Segurança Pública do País.

Como chefe de polícia do Estado do Paraná e presidente do Colégio Nacional dos Secretários de Segurança Pública (Consesp) - órgão que tem um ano e meio e nasceu com o propósito de discutir interesses e soluções comuns a todas as secretarias do Brasil -, sinto-me na obrigação de revelar à população a forma descabida, vergonhosa e irreal como o governo federal encara o grave problema da violência, claramente explicitada ao aplicarmos as regras básicas da matemática de soma e subtração.

Aos números: em 2004, o Fundo Nacional de Segurança Pública reservou R$ 380 milhões para distribuir a todos os Estados da Federação, dos quais um terço - ou R$ 120 milhões - acabará ficando nas mãos do Ministério da Justiça e da Polícia Federal, caracterizando um "desvio de propósito" da verba. Ao meu Estado, por exemplo, neste ano couberam R$ 4,3 milhões. Para o próximo ano, o fundo pretende destinar R$ 3,5 milhões, ou seja, 20% a menos do que distribuiu este ano. Mais espantoso ainda se levarmos em consideração a escala regressiva de distribuição de recursos federais desde o ano 2000. Na ocasião, o Paraná foi "contemplado" com R$ 14 milhões. No ano seguinte, ainda sob a batuta do governo Lerner (publicamente reconhecido como uma administração que abandonou a segurança do Estado), o governo federal ampliou a verba para R$ 20 milhões. O ano de 2002 foi o melhor da última década, com o repasse de R$ 24,4 milhões. No ano passado, foram R$ 6,8 milhões.

Outro dado importante: em 2005, a União pretende investir cerca de R$ 30 bilhões nas áreas de saúde e educação. Para a segurança pública "sobrarão" R$ 350 milhões - ou cerca de 1% do que receberão as outras duas áreas extremamente sensíveis e estratégicas para o progresso de qualquer governo do mundo. A reivindicação do Consesp é de, no mínimo, R$ 1,5 bilhão de repasse para os Estados.

A reflexão que devemos fazer é a seguinte: por que num país onde a miséria social sentencia, a cada dia, centenas de brasileiros; onde o tráfico de drogas se firma como um "negócio" de proporções alarmantes e incontroláveis em alguns Estados; e onde a vida é tirada com a mesma facilidade com que se tira o doce de uma criança, a segurança pública recebe uma importância minimizada - ou até secundária?

Há poucas semanas, eu e meus colegas secretários nos reunimos em Maceió, cidade que sediou o último encontro do ano do Consesp. A decisão mais importante, dentre várias, foi uma carta ao presidente da República, assinada por todos, em que manifestamos nossa insatisfação com a previsão orçamentária irrisória. Em relação ao Paraná, eu e o governador Roberto Requião já decidimos: essa quantia insignificante não será aceita. O rompimento do Paraná com o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) é irreversível diante dessa realidade. Queremos seriedade para o tema.

Foi assim também na questão do combate aos jogos de azar e, de certa forma, na campanha de desarmamento, que tomou conta do País em poucos meses.

Em meados de 2002, ainda como promotor de Justiça e integrante da Promotoria de Investigações Criminais do Estados do Paraná (PIC), iniciei, com o respaldo do governo do Estado, árdua briga pelo fechamento dos bingos. Após identificarmos as ramificações das casas de bingo com políticos influentes (inclusive integrantes do secretariado do governo anterior ao nosso); depois de confirmarmos que vários estabelecimentos serviam para promover a lavagem de dinheiro conquistado ilicitamente; após encontrarmos várias famílias que tiveram seu patrimônio deteriorado pela dependência do jogo; e, finalmente, conseguirmos provar o real propósito das casas de bingo, fomos os pioneiros no Brasil a combater esse tipo de crime. Quando o governo federal notou que a iniciativa era coerente e necessária, não demorou a encampar a idéia - motivo de orgulho para o nós. Mas, infelizmente, a decisão não foi tão eficiente. Hoje, o Paraná é o único Estado que mantém todos os bingos fechados. Nos outros, a empreitada do governo Lula acabou derrotada em brigas judiciais.

Já com o desarmamento não ocorreu o mesmo. Até porque o tema é muito mais relevante e envolve toda a população. De novo, o Paraná saiu na frente: foi nossa a idéia de trocar armas por uma quantia em dinheiro. Deixamos o plano das discussões intermináveis para arriscar no plano da execução. Não demorou mais que dois meses para que arrecadássemos mais de 5 mil armas e chamássemos a atenção do País. O sucesso da campanha atraiu o governo federal, que comprou a nossa briga e a tornou nacional.

Ao citar os exemplos dos bingos e do desarmamento pretendo apenas explicitar que, de forma geral, nosso país ainda carece de planos e execuções. Não há motivos para que as classes políticas - com exceções - reservem tanto tempo para a retórica sobre certos temas em detrimento das causas que merecem ação imediata.

Em 2004, os brasileiros retomaram parte do ânimo com algumas boas notícias referentes à recuperação econômica. Mas não podemos esquecer que uma das obrigações básicas de uma nação é oferecer proteção às pessoas e, principalmente, garantir que vivam para construir um país digno. Infelizmente, o país do carnaval ainda rasteja na estratégia de condução da política de segurança pública, ao menos na esfera federal.

Convidamos todos os Estados a seguirem o nosso exemplo e esperamos que o presidente Lula nos receba o quanto antes.

Luiz Fernando Delazari é secretário da Segurança Pública do Paraná