Título: A escolha das irmãs Marques
Autor: Marici Capitelli
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/01/2005, Vida &, p. A14

"Mãe, decidimos que o seu rim será da Anna Paula. É ela quem está tendo mais intercorrências (complicações) com a diálise." Foi assim - às 6 horas do dia de Natal - que as irmãs Eva Cristina, de 25 anos, e as gêmeas Anna Maria e Anna Paula, de 23, comunicaram a decisão mais difícil de suas vidas: escolheram, entre elas, a que receberia o órgão da mãe. As três, que sofrem de uma rara doença, estão na fila de transplante, à espera de um rim, há mais de quatro anos. Emocionadas, elas continuaram explicando a decisão diante do olhar angustiado da mãe. "Assim, ela vai carregar um pedaço seu para sempre. Nossa vez também vai chegar." A mãe, Izilda Cristina Reinelt, de 50 anos, nada disse. Não tinha o que dizer. Os sentimentos eram complexos demais. Um misto de dor profunda, esperança, alegria e impotência. Apenas abraçou as meninas como faz sempre. De maneira protetora e afetuosa.

Izilda é doadora compatível com as filhas e seu rim poderia beneficiar igualmente qualquer uma delas. Elas descobriram a compatibilidade há dois anos. Desde então, as quatro vinham protelando a decisão. Não conseguiam vencer o emaranhado de emoções.

"Desde que fui confirmada como doadora, ficou claro no meu coração que eu não teria condições emocionais de escolher para qual delas doaria o rim. É um amor incondicional o de uma mãe. Essa escolha não é possível", afirma Izilda. Em sua opinião, as jovens estariam mais aptas a decidir.

As irmãs, então, tiveram de decidir quem seria a receptora. Moradoras de Campinas, a 98 quilômetros de São Paulo, elas combinaram de fazer a escolha dentro da Igreja de Nossa Senhora Aparecida. Assim como a mãe, são devotas da santa. "Iríamos fazer uma oração e colocar o nome das três no altar. Em seguida, faríamos o sorteio", lembrou Eva, a mais falante das três.

Mas a relação forte entre elas tornou o sorteio desnecessário. "Achava que a Anna Paula era a que mais precisava por causa das intercorrências que vinha apresentando. Então, cheguei para a Anna Paula e disse o que eu estava pensando", contou Eva. Nem precisou concluir a frase. "Eu também estive pensando...", acompanhou Anna Maria.

Sem muitas palavras ou justificativas, elas abriram mão do rim em favor de Anna Paula. Por volta das 20 horas da noite de Natal, Anna Maria e Eva foram para a sala de meditação que possuem em casa. É esse espaço que as ajuda a enfrentar os dias de tempestades emocionais, tristezas, alegrias e gratidão. Saíram de lá quase duas horas depois. A mãe percebeu que tinham chorado.

À meia-noite, as três se abraçaram. Eva e Anna Maria contaram, ou melhor, deram o "presente" para Anna Paula. Choraram abraçadas, mas decidiram não contar nada aos pais nem ao irmão mais velho, André, de 29 anos, naquela noite. Às 6 horas do dia seguinte, as jovens acordaram a mãe. Queriam compartilhar a decisão mais complexa de suas vidas.

ESPERANÇA

Izilda já começou os exames preparatórios para a cirurgia. O transplante deverá ocorrer no fim de fevereiro. Até lá, a família quer celebrar duas datas importantes.

No próximo dia 22, é a formatura de Eva. Apesar das dificuldades por causa da diálise e suas intercorrências, ela conseguiu concluir o curso de Psicologia. A formanda comprou o vestido mais lindo que encontrou. Preto e com flores. "Quero comemorar muito. É uma nova vida que começa para mim." No dia 13, Anna Maria e Anna Paula completarão 24 anos. "Vai ser um aniversário muito especial. Estamos celebrando a esperança", diz Izilda.

Esperança, principalmente, para Anna Paula, que, após o transplante, não precisará mais da diálise e voltará a ter uma vida normal. "Me sinto muito agradecida pelo que as minhas irmãs fizeram por mim. Nunca vou conseguir expressar a minha gratidão." Anna Paula respira fundo. Os olhos se enchem de lágrimas.

"Mas tudo isso me dói muito. Eu queria que nós três saíssemos juntas de tudo isso. Fico triste em saber que elas vão continuar na diálise. Nós estamos unidas em toda essa história", explica Anna Paula, que vai começar o curso de Letras.

Doadora e receptora se abraçam. Choram. "Não agüento abraçar a Anna Paula e ficar olhando para os rostinhos da Evinha e da Anna Maria, sabendo que elas também precisam do meu rim", conta Izilda.

Embora saiba que a idéia é absurda, a mãe já propôs várias vezes aos médicos a doação dos dois rins. "Não me importaria viver colada a uma máquina de diálise se pudesse beneficiar pelo menos mais uma das minhas meninas." Os profissionais nem levaram a sugestão a sério.

SORTE LANÇADA

A história da família sensibilizou a equipe de médicos que as atendem no Hospital do Rim, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "Expliquei tudo, mas deixei a decisão para elas, já que as três poderiam receber o rim da mãe. Foi um momento difícil e uma escolha complicada", afirma o médico das jovens, José Osmar Medina Pestana, diretor do Programa de Transplantes do Hospital do Rim e com 22 anos de profissão.

Cinco pessoas da família de Izilda fizeram os testes de compatibilidade. Nenhuma delas foi compatível. Nem mesmo o irmão. O pai, João Otávio Meneses Marques, de 56 anos, apresentou uma disfunção no rim e não pôde ser doador.

Desesperada, Izilda chegou a fazer um apelo público para conseguir doadores. Milhares de pessoas telefonaram. Algumas chegaram a pedir dinheiro. R$ 250 mil em troca da doação. Outras três fizeram os testes. Não eram compatíveis.

Preocupado com os rumos que o caso pudesse tomar, o médico Osmar Medina conversou com os pais. Explicou que não se deve incentivar a doação de pessoas que não sejam parentes muito próximos - pais ou irmãos - ou não tenham um vínculo afetivo muito forte com o paciente. "Não queremos dar margem à venda de órgãos", enfatiza o médico.

A esperança dos Marques se volta agora para dois sobrinhos do pai, que moram no Rio e farão os testes de compatibilidade neste mês.

"A sorte está lançada. Mas em nenhum momento tenho dúvidas de que tudo vai dar certo. Afinal, é a nossa missão e vamos passar por ela da maneira mais sábia possível", afirma Izilda. E cada uma tenta suavizar o caminho da outra.