Título: Argentina enfrenta seu maior teste
Autor: Ariel Palacios
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/01/2005, Economia, p. B1

O governo do presidente argentino Néstor Kirchner prepara-se para enfrentar nesta semana o teste mais decisivo de seu conturbado currículo financeiro. Na quarta-feira, dia 12, o ministro da Economia, Roberto Lavagna, lançará o tão esperado processo de reestruturação da dívida pública com os credores privados, laconicamente chamado na city financeira portenha de "el canje de deuda" (a troca da dívida). Do grau de adesão que os novos títulos (reestruturados) consigam entre os melindrados credores - donos dos velhos títulos, em estado de calote - dependerá o sucesso da operação. Está em jogo o futuro do financiamento externo do país. Se a troca de títulos for um êxito, a médio prazo a Argentina voltará a ver divisas entrando em seu território. Além disso, também depende desse sucesso a relação argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI). As relações com esse organismo financeiro estão atualmente congeladas, aguardando o término da troca de títulos.

O lançamento dos novos papéis será precedido por uma campanha de marketing para seduzir os credores, cujo slogan é: "Com a troca da dívida, você pode transformar seus bônus em realidade". Mas Lavagna não se restringirá à publicidade. Nesta semana, seus assessores embarcarão rumo aos principais centros financeiros do planeta para trabalhar pessoalmente pela troca da dívida.

No total, Lavagna apresentará três bônus novos, que substituirão os 150 antigos. Terão prazos de 30 a 42 anos e reduções de seus valores nominais entre 30,1% e 66,3%. Desde a primeira proposta de reestruturação da dívida, em setembro de 2003 em Dubai, os credores consideraram que a redução era "obscena". Mas, de lá para cá, após cenas de esperneio, começaram a resignar-se.

Com a operação de reestruturação, Kirchner pretende encerrar o maior calote da história contemporânea (declarado em dezembro de 2001), envolvendo US$ 100 bilhões, entre juros e capital. A nova dívida encolherá para US$ 38,65 bilhões.

No mesmo instante do anúncio, a Argentina mergulhava na maior crise financeira, social e econômica de sua história. Os gurus econômicos profetizavam que o país teria de recuar no calote, já que não contaria com dinheiro para financiar seus gastos. No entanto, a Argentina sobreviveu, recorrendo até à emissão de patacones e outras moedas paralelas para pagar dívidas internas.

FISIOTERAPIA

Paradoxalmente, sem ajuda externa, em pouco tempo o país saiu do fundo do poço. De Washington a Milão, passando por Londres, economistas e lideranças políticas começaram a falar no "milagre" da ressurreição argentina. No entanto, embora esteja fora do perigo de explosão social que pairava em 2002, a Argentina está longe de estar com a saúde plenamente recuperada. Recorrendo a metáforas médicas, o vice-presidente Daniel Scioli admite que a Argentina saiu da UTI, mas precisa de fisioterapia.

Para o ex-secretário de Fazenda Manuel Solanet, esse crescimento não é "genuíno". Diversos economistas argumentam que a suposta pujança dos últimos dois anos não passa de uma casca. As exportações crescem em preço, mas não em volume. O suculento superávit fiscal foi obtido em parte por não pagar a dívida pública, além de arrecadação tributária recorde. A própria arrecadação foi obtida em grande parte pela aplicação de impostos distorcidos, como as retenções sobre exportação e a taxa sobre operações financeiras, inspirada na CPMF brasileira.

De quebra, o desemprego, embora tenha diminuído, ainda é elevado, passando a faixa dos 13%. Esse é o índice oficial, pois o governo não contabiliza os 2,2 milhões de adultos que recebem o subsídio desemprego de US$ 50 mensais. Se eles fossem incluídos no suavizado cálculo oficial, o desemprego atingiria 20% da população economicamente ativa. Como se fosse pouco, para a maioria dos empresários o crédito ainda é escasso.

Comentários otimistas provenientes do exterior, como os realizados recentemente pelo Citibank, indicando que a Argentina era um lugar mais apropriado do que o Brasil para investimentos são olhados com ceticismo deste lado da fronteira. O consultor financeiro Norberto Sosa, da Raymond James, disse ao Estado que "muitas vezes as pessoas tomam decisões com uma memória muito curta."

Segundo Sosa, "se olharmos o crescimento que estas duas economias tiveram, o negócio é outro, já que o Brasil cresceu 0,5% em 2003 e cerca de 4,9% em 2004."

Na opinião do consultor, se forem acumulados os dois anos, o Brasil cresceu 5,4%. Paralelamente, a Argentina, somando 2003 e 2004, cresceu 17%. "Mas, se olharmos um pouco mais atrás, a partir do ano 2002, veremos que o acumulado argentino foi de 6,1%, enquanto o brasileiro foi de 7,4%. E, se levarmos em conta o acumulado desde 2001, o Brasil cresceu 8,7% e a Argentina somente 1,7%."

Segundo Sosa, o Brasil se comportou bem e cresceu quatro vezes mais do que a Argentina. "As pessoas parecem esquecer que a Argentina teve uma queda de 4,4% do PIB em 2001 e de quase 11% em 2002. Além disso, o Brasil está iniciando 2005 com uma dívida que é de 52% do PIB, enquanto a Argentina tem uma dívida de 150% do PIB."

Para Sosa, mesmo que a operação de troca de títulos seja um sucesso, a dívida argentina ficará em 78% do PIB, ainda acima da proporção que o Brasil tem. Por isso, disse ele, "é injusto quando reclamam ao presidente Lula de que supostamente a Argentina cresceu muito e o Brasil pouco."

Dante Sica, diretor do Centro de Estudos Bonaerenses (CEB), disse que não há um milagre argentino. "O país está se recuperando, coisa muito diferente". Ele rejeita as afirmações de que o calote foi bom para o país. "É preciso que as pessoas entendam que o calote não foi bom para a Argentina. Com um contexto político interno diferente e um hipotético cenário financeiro de baixas taxas internacionais, o calote teria sido evitado."