Título: A cidade clandestina dos sem-prefeito
Autor: José de Souza Martins
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/01/2005, Metrópole, p. C3

Mais de 2 milhões e 100 mil pessoas, na cidade de São Paulo, vivem em favelas, cortiços, habitações improvisadas e na rua, segundo estudo divulgado pelo Instituto de Estudos Avançados da USP em 2003. São um quinto da população da cidade. Enquanto a sua população cresceu 8% entre 1991 e 2000, a categoria dos favelados cresceu 5 vezes esse índice, a dos moradores de cortiço mais de 7 vezes, a das habitações improvisadas 12 vezes e a dos moradores de rua 10 vezes. Para lançar o Fome Zero, o presidente Luiz Inácio não precisava ter ido a um canto quase inacessível do Brasil. Bastaria ter vindo a São Paulo, de acesso mais fácil e viagem mais barata. Geograficamente o sertão pobre está lá. Sociologicamente está aqui também e até muito mais. Essas populações vivem no geral em ruas que elas próprias batizaram, em habitações cujo número elas próprias inventaram. Na Favela do Jaguaré, os moradores batizaram uma rua com o nome do pássaro Assum Preto. Poéticos, mas clandestinos. Oficialmente, não existem, a não ser para o romântico carteiro, único empregado do governo que percorre todas as ruas e vielas, todos os dias. E acha os destinatários das cartas vindas dos recantos ermos do País.

O conjunto dessa população praticamente equivale à de Fortaleza ou à de Belo Horizonte e não está muito longe do total da população de Salvador. É maior do que a do Distrito Federal. Se fosse capital de um Estado, seria a sétima capital mais populosa do Brasil. O Distrito Federal, que é menor, elege um governador, uma Assembléia Distrital, deputados federais e senadores.

A São Paulo clandestina não elege ninguém nem tem direito a nenhuma forma de expressão que dê visibilidade política e institucional à sua condição anômala, peculiar e desumana de habitar. Quando vota, seu voto se dissolve em políticos que representam a cidade legal, onde não vivem, mas não a cidade clandestina, onde vivem. Ganham identidade quando aparecem de maneira desproporcional e injusta no noticiário policial.

Há um abismo entre essa multidão espalhada pela cidade e a administração da cidade. A estrutura político-administrativa do município é obsoleta. É baseada no pressuposto da territorialidade dos cidadãos, da alocação das pessoas a territórios formal e oficialmente reconhecidos e politicamente organizados para que se tornem administráveis. Já esses meio-cidadãos de São Paulo são puramente imaginários. São os sem-prefeito.

Não são pessoas nem um pouco diferentes das demais. Favelas e cortiços são habitados por trabalhadores, pequenos negociantes e rentistas. O índice de desemprego na Favela do Jaguaré, que tem mais de 12 mil habitantes (mais que muitos municípios brasileiros), é o mesmo da média da capital. Seus moradores trabalham nas indústrias e nos estabelecimentos comerciais próximos, na construção civil ou na coleta de lixo reciclável. Há uma vitalidade na economia da pobreza. Um instalador da Telefônica disse-me que cerca de 80% das habitações da favela têm telefone. Há ali bares e lojas. Num dos barracos encontrei até mesmo uma agência de viagens. Uma pequena casa em terreno que é público pode custar R$ 25 mil. O comércio imobiliário de casas e barracos é visível nos anúncios de venda. Barracos que são quarto, cozinha e privada ao mesmo tempo.

Essa é a vitalidade econômica da miséria, nas condições perversas de reprodução dessa economia, do pobre explorando o pobre. Pouco antes do Natal percorri algumas das vielas, com o jovem presidente da associação dos moradores. Num dos barracos, à beira de um precipício em área de risco, encontrei uma senhora, com seus cinco filhos pequenos, limpos, bonitos, simpáticos, ela própria bem cuidada, bonita, jovem ainda, educada, com boa escolaridade. O marido trabalha numa padaria. Seu barraco foi levado pela enxurrada que descia o morro, tendo a família escapado em tempo. Ao lado do abismo, alugou de uma vizinha um barraco por R$ 120,00 mensais. O marido ganha R$ 240,00 no trabalho da padaria. Também na favela a economia vai adiante e bem. O que não vai bem é a sociedade.

Há cerca de dois anos, na parte mais pobre da favela, ainda passava o trem levando trigo para um moinho próximo. Devido aos riscos, os barracos muito próximos, o tráfego das composições foi suspenso. Imediatamente, os moradores ampliaram os barracos por cima de uma parte da linha, lugar de passagem e acesso dos habitantes do lugar, que era também o corredor de entrada da luz do sol naquele trecho. Ao lado passa aberto o canal de esgoto, por dentro dos barracos. Encontrei há poucas semanas, no meio de uma tarde, crianças pequenas brincando na escuridão desse corredor. Já vira isso há uns três anos no que era então uma favela oculta sob o viaduto que passa sobre as duas ferrovias, perto do antigo Palácio dos Campos Elísios. Crianças em pleno dia brincando na escuridão, emparedadas pelos trens constantes que passam pelas duas estradas de ferro que a margeiam.

O único serviço público organizado na Favela do Jaguaré é de iniciativa do padre da paróquia de São José, com auxílio de voluntários: creche, aulas de reforço escolar, cursos de costura e moda, informática, gastronomia, biblioteca, centros de lazer.

A cidade de São Paulo não é beneficiada por nenhum programa federal de incentivos fiscais para criação de pólos de desenvolvimento e emprego em regiões desfavorecidas. O governo federal não reconhece a cidade como poderoso aglomerado humano do Polígono das Secas. Basta ir à Rodoviária do Tietê e tomar nota do lugar de origem e destino dos ônibus para saber que estamos no sertão. Há alguns anos encontrei o bispo de Juazeiro, Bahia, fazendo visita pastoral na Favela do Jaguaré. Os índios pankararu vêm sazonalmente para São Paulo trabalhar no transporte de sacaria na Rua Santa Rosa, para obter o dinheiro que ajuda a manter suas famílias lá na roça. Aqui moram em cortiços.

Nesses verdadeiros enclaves, a maioria da população é de crianças e jovens, o futuro do Brasil. Qual futuro, cara-pálida?

*José de Souza Martins é professor aposentado de Sociologia na Universidade de São Paulo