Título: Divergência de interesses
Autor: CELSO MING
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/01/2005, Economia, p. B2

Os resultados ainda preliminares do comércio exterior de 2004 parecem indicar que a atual política externa executada pelo Itamaraty vai enfrentar ainda mais divergências com os interesses do sistema produtivo brasileiro. Apenas em materiais de transporte, que incluem veículos, aviões, navios e autopeças, a indústria brasileira exportou US$ 16 bilhões em 2004 (16,6% do total exportado), ou 50,9% a mais do que no ano anterior. Esse volume só foi atingido graças às crescentes importações de conjuntos, sub-conjuntos, peças e matérias-primas de todos os tipos.

As informações desagregadas sobre essas importações ainda não estão disponíveis, mas apenas em matérias-primas e produtos intermediários, a indústria importou 29,7% a mais do que no ano anterior. Isso mostra que o dinamismo das importações da indústria brasileira está exigindo crescente liberalização das importações do segmento de produtos intermediários.

A Embraer é o caso mais conhecido. Não seria o sucesso que é se seus aviões não tivessem alto componente de materiais importados. Exemplos: os cones de cauda são fornecidos pela Hamilton Sundstrand, dos Estados Unidos; os motores, pela britânica Rolls Royce e pela americana General Electric; os aviônicos (aparelhos eletrônicos) são da Honeywell, americana; os componentes da asas, da japonesa Kawasaki; e por aí vai.

Para que a indústria brasileira de veículos seja dinâmica nas exportações, não basta que apresente preços mais atraentes ao comprador externo. Terá de fazer investimentos em produto. Isso implica não só atualização em modelos globais, mas ampliação das importações. Num momento em que o dólar segue perdendo preço em reais, um dos recursos que podem melhorar a competitividade do produto de exportação é a redução de tarifas alfandegárias dos produtos intermediários. Isso não vale só para o setor de transportes. Vale também para têxteis, aparelhos domésticos e eletrônicos.

Essas exigências trombam com a tendência crescentemente protecionista do governo argentino à sua indústria. O governo Kirchner não quer apenas cercear a entrada de produtos brasileiros no mercado argentino. Quer proteger a indústria argentina com instrumentos que, em última análise, aumentariam os custos internos de produção. E quer a imposição de regras de investimento que impediriam o maior desenvolvimento da indústria brasileira.

As exigências argentinas no setor automotivo, por exemplo, tendem a encarecer o produto brasileiro e, portanto, a reduzir a escala de produção e capacidade de exportação. O presidente Kirchner pretende que os investimentos de multinacionais no Brasil só possam ser feitos se parte for transferida para a Argentina, onde, em conseqüência da política protecionista, os custos de produção são necessariamente mais altos.

Os argentinos não têm planos consistentes de recuperação de sua indústria baseados em esforço próprio. Pretendem tirar o atraso com providências que cerceiam o desenvolvimento industrial brasileiro. Se ainda houvesse clareza sobre a duração desse movimento talvez valesse a pena esperar. No entanto, não há indicações disso.

A liberação dentro do Mercosul do mercado do setor automotivo, por exemplo, vai sendo sistematicamente adiada desde 2000. Agora, o governo argentino quer mais três anos de choro e nada garante que, terminado esse prazo, o tempo de espera não seja novamente esticado.

O Itamaraty faz bem em responder com serenidade às provocações e parlapatices do presidente Kirchner. Mas não pode ignorar que a estratégia do governo Lula para a América do Sul, de dar prioridade a questões geopolíticas, tende a tolher a conquista de mercado externo pela indústria brasileira. E é isso o que explica as crescentes críticas à atuação das autoridades da área externa pelas lideranças industriais brasileiras.