Título: De volta ao passado
Autor: Manuel H. F. Ramos
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/01/2005, Economia, p. B2

O anteprojeto de reforma sindical oriundo do Fórum Nacional do Trabalho (FNT) - e em via de ser encaminhado ao Congresso Nacional - não deixa de atender apenas aos interesses da maioria das entidades sindicais brasileiras. Mais grave do que isso, porque diz respeito à própria democracia, representa uma ameaça de restabelecer a nefasta interferência do Estado nos sindicatos de empregados e de empregadores. É interessante verificar como isso ocorreu. Quando o governo decidiu partir para a reforma trabalhista, precedida por uma reforma sindical, procurou dar a esta um aspecto democrático. Promoveu a realização de fóruns estaduais, integrados por entidades de base como sindicatos e suas federações, que recolheram inúmeras e positivas sugestões.

Essas contribuições, porém, foram desconsideradas quando chegaram à Comissão de Sistematização, de tal forma que as cláusulas levadas ao plenário do FNT refletiam apenas o interesse das cúpulas, e não mais das bases.

Cabe lembrar que o fórum teve os seguintes coordenadores: pela bancada dos empregadores, Antônio de Oliveira Santos, presidente da a Confederação Nacional do Comércio (CNC); Luiz Marinho, presidente da CUT, representando os empregados; e, em nome do governo, no cargo de coordenador-geral do FNT, Osvaldo Bargas, que durante anos ocupou a Secretaria de Relações Internacionais da CUT. Os dois últimos imprimiram ao anteprojeto a indelével marca do autoritarismo.

Senão, vejamos: o anteprojeto prevê a criação de um Conselho Nacional de Relações do Trabalho, formado por representantes do Ministério do Trabalho e Emprego, das confederações e das centrais sindicais e, para atuar nos Estados, câmaras bipartites integradas pelas federações patronais e de trabalhadores.

Essa estrutura seria mantida por um "fundo solidário", com recursos equivalentes a 5% do total a ser arrecadado pela contribuição negocial, que substituiria as atuais contribuições sindical, assistencial e confederativa. Aos sindicatos seria reservada a luta fratricida por um lugar no mercado - a chamada de pluralidade -, desvirtuando o seu legítimo papel político de defesa dos interesses da categoria profissional ou econômica que representam.

O pior, porém, vem a seguir. Segundo o anteprojeto, cabe ao tal Conselho Nacional de Relações do Trabalho "propor, para deliberação do Ministério do Trabalho e Emprego, as disposições estatutárias mínimas a serem observadas pelos sindicatos que postularem a exclusividade de representação". E quais são essas disposições? Nada menos que as seguintes: 1) Direitos e deveres dos associados e dos membros da direção; 2) estrutura organizativa e suas finalidades; 3) composição da direção e suas atribuições; 4) período dos mandatos dos membros da direção; 5) penalidades e perda do mandato; 6) requisição para votar e ser votado; 7) Conselho Fiscal e prestação de contas; 8) remuneração dos membros da direção; 9) processo eleitoral; e 10) dissolução da entidade.

Submeter tudo isso à deliberação do Ministério do Trabalho representa a volta do modelo getulista de tutela dos sindicatos, inspirado na Carta Del Lavoro de Mussolini, outrora tão combatido pela CUT.

Vale lembrar o que diz a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), tantas vezes brandida pela CUT, em seu artigo 3.º: "As organizações de trabalhadores e de empregadores terão o direito de elaborar seus estatutos e regimentos, eleger livremente seus representantes, organizar sua administração e atividades e formular seus programas de ação. As autoridades públicas abster-se-ão de qualquer intervenção que possa limitar esse direito ou cercear seu exercício legal."

Há muitas outras pérolas do modelo autoritário intervencionista no anteprojeto. Uma delas concede às entidades de nível superior (centrais e confederações) o poder de estabelecer cláusulas na convenção coletiva de trabalho, que não poderão ser objeto de negociação pelos sindicatos, anulando a autonomia destes.

As distorções são tantas que o bom senso recomenda o arquivamento dessa reforma. O artigo 8.º da Constituição federal, que assegura a liberdade e a autonomia sindicais, não precisa e não deve ser revisto para permitir a volta do entulho autoritário. O que ele precisa é ser regulamentado (o que até hoje não foi feito), para impedir a proliferação de entidades sindicais caça-níqueis e aferir a representatividade dos sindicatos, de federações, de confederações e mesmo de centrais sindicais.

*Manuel Henrique Farias Ramos, cientista político,

comerciante, segundo-vice-presidente da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio), é presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Carnes Frescas do Estado de São Paulo